Entrevista com Maura Baiocchi [Entrevistada por Elise Hirako]
UNIVERSIDADE DE BRASILIA
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas PPGCEN
Disciplina: Metodologia
Discente: Elise Hirako
Entrevista Maura Baiocchi
EH: Bom dia, estamos aqui hoje com a coreógrafa, dançarina, diretora e atriz Maura Baiocchi. Maura iniciou sua trajetória artística nos anos 1970 em Brasília onde estudou comunicacão na UnB e colaborou com as companhias de danca de Hugo Rodas, Regina Miranda e Yara de Cunto. A partir de 1980, atuou como solista e criou vários grupos de dança e performance(Previsão do Tempo, Fotógrafo nua, Corpo Estranho). De 1984 a 1986, lecionou Artes Cênicas na Universidade de Brasília (UnB) e na Faculdade Dulcina de Moraes. Maura foi também uma das fundadoras do projeto Cometas Cenas e do movimento Cabeças.
A partir de 1988 tornou-se grande referência como pioneira da dança Butoh no Brasil, após ter estudado com Kazuo Ohno e Min Tanaka em 1987 no Japão. Em 1995 foi idealizadora, curadora e produtora da Mostra Butoh e Teatro Pesquisa, realizada em São Paulo, Curitiba e Brasília. Por ocasião dessa Mostra que trouxe pela primeira vez os dançarinos Min Tanaka, Ko Morubushi, Urara Kusanagui e Iwana Masaki ao Brasil, Baiocchi lançou Butoh Dança Veredas D’Alma, o primeiro livro sobre o butoh em lingua portuguesa.
Em 1990, Maura Baiocchi se mudou para São Paulo onde seu projeto "Taanteatro: uma pesquisa para a transformação da dança“ é contemplado pelas Bolsas Vitae. Maura é a criadora do taanteatro ou teatro coreográfico de tensões e diretora-fundadora da Taanteatro Companhia desde 1991.
A Maura é autora de mais de 80 espetáculos coreográficos (elenco e solo) autorais e alguns foram baseados na vida e obra de artistas e pensadores como Frida Kahlo, Florbela Espanca, A. Artaud, Comte de Lautréamont, Shakespeare, Nietzsche, Deleuze; bem como em problemáticas ambientais, decoloniais e de gênero. O trabalho de Baiocchi foi premiado e fomentado pelas esferas municipal, estadual e federal. Ela fez carreira internacional mostrando sua obra na Alemanha, Argentina, Bélgica, Estados Unidos, França, Inglaterra, Japão, Moçambique e Rússia.
Publicou vários livros sobre o taanteatro, entre os quais Taanteatro: teatro coreográfico de tensões (Azougue Editorial, RJ, 2007); Taanteatro: Rito de passagem (Transcultura, SP, 2011); Taanteatro - Teatro Coreográfico de tensiones (Editorial UNV, Córdoba, Argentina, 2011); Taanteatro: MAE: Mandala de energia corporal (Transcultura, SP, 2013); Taanteatro: [des]construção e esquizopresença (Transcultura, SP, 2016), Taanteatro: forças & formas (Transcultura, SP, 2018); Choreopraphic Theater of Tensions: forces & forms (Transcultura, SP, 2020).
Para quem quiser conhecer mais sobre o Taanteatro segue aqui os contatos:
Website: http://www.taanteatro.com
Instagram @taanteatrocompanhia
Youtube https://youtube.com/user/taanteatro
Vimeo: Taanteatro Companhia https://vimeo.com/user9504695
facebook: https://www.facebook.com/taanteatro.companhia
https://www.facebook.com/groups/1654665821515498
Elise Hirako: Tudo bom? (Elise mostra os livros) Muito obrigada. Estou lendo com muito carinho!
Maura Baiocchi: É um prazer você ter nos contactado, me fez reconectar também com a dança butoh e com o taaanteatro. É para o seu mestrado?
EH: Sim, é para o mestrado. Estou investigando a situação de solidão no processo composicional da dança butoh.
MB: Eu achei muito interessante sua proposta.
EH: Que bom fico muito feliz! Ao aproximar da sua pesquisa li que em 1991, você ganhou a Bolsa Vitae de Artes com o projeto Taanteatro: uma pesquisa para a transformação da dança, impulso decisivo para a criação e fundação da Taanteatro Companhia. O Jornal de Brasília atribuiu aos seus integrantes “um processo muito particular de aperfeiçoamento do corpo e identificação completa com o estilo de linguagem Butoh”, no mesmo artigo você diz que “a introdução do texto e do personagem literário no universo do Butoh” traz “um risco e um desafio inéditos, que levarão, naturalmente, a uma ultrapassagem da forma/conteúdo do Butoh tradicionalmente conhecidos.” gostaria que você falasse sobre como foi para você, este processo de criação do Taanteatro.
MB: Logo que cheguei do Japão em 1988 estava muito impregnada da cultura japonesa e da dança butoh. Inicialmente sofri um choque cultural. E à medida que voltei a trabalhar, a ter contato com minha própria cultura, fui sentindo a necessidade de introduzir novos elementos nas minhas criações. Para ser bem sintética, entre todas as necessidades, uma que falou alto foi a introdução da palavra e do estudo de textos literários nos trabalhos que eu fazia. Quando estudei butoh com Kazuo Ohno e Min Tanaka percebi que eles nunca utilizavam textos ou palavras em cena. Grupos grandes como Biakko-sha, abusavam de gritos e grunhidos. Como sempre trabalhei com teatro paralelamente aos meus estudos de dança, eu tinha muita vontade de fazer essa conexão com o texto literário e o uso da palavra na cena, então aqui e ali eu explorava isso. Sentia que fugia do butoh como é tradicionalmente conhecido, focado principalmente no gesto, nos movimentos. Poderia apontar uma outra questão importante: que a dança butoh é extremamente atávica à cultura japonesa com todos seus aspectos éticos e estéticos, sociais e políticos. Portanto, eu como brasileira, me envolvia até um certo ponto, porque tinham certas coisas que não me diziam muito respeito, por isso eu achei por bem que teria que haver uma “ruptura", mas uma ruptura amorosa, porque eu nunca neguei as influências que eu sofri da dança butoh e que permeiam muitas das técnicas de treinamento que eu desenvolvi, e também no que diz respeito à alguns conceitos que desenvolvemos no contexto da nossa própria pesquisa, ou dinâmica taanteatro. Nós estudamos muito e existe muita auto-crítica também no processo constante de busca de aprimoramento. Como eu fui a primeira brasileira a estudar a dança butoh com Kazuo Ohno, eu senti uma responsabilidade muito grande quando voltei para o Brasil. E essa responsabilidade aumentou quando Kazuo Ohno falou assim para mim: "agora que você vai embora, você continua desenvolvendo esse trabalho, passa para adiante…”, asssim eu me senti validada para oferecer oficinas de butoh e de passar adiante o que eu tinha aprendido. Eu optei por desenvolver um conjunto de práticas e uma metodologia que fosse minha e não a do Kazuo Ohno porque a forma dele ensinar era por meio de laboratórios de improvisação a partir do repertório de imagens poéticas muito pessoais, dele mesmo. E a medida que o tempo foi passando eu cheguei à conclusão que estava criando uma abordagem muito própria e em muitos aspectos diferente da dança butoh. Então, em 1991 eu sedimentei a dinâmica taanteatro graças à Bolsa Vitae de Artes que recebi naquele mesmo ano, em São Paulo.
MB: A maioria dos trabalhos que fiz no Japão tinham como fonte de inspiração minha relação com o universo afro-indígena brasileiro, porque eu tenho sangue indígena, negro, europeu… típica brasileira. Mas eu sempre prezei a cultura dos nossos ancestrais, então eu trabalhei por exemplo, as forças da natureza presente nas entidades/deidades do candomblé e do universo indígena. Eu sempre fui ligada à natureza e à ancestralidade. Para mim nossa ancestralidade é anterior à genética dos corpos humanos. Se você imagina o planeta Terra como sua casa, e o próprio universo como um de seus ancestrais, essas forças cósmicas e também terrenas, ligadas aos elementos da natureza, ligadas ao estado da matéria, liquido, solido, gasoso e suas variações. Conectar-se com a porção água do corpo, conectar-se com o ar, a terra, o fogo… . Essas forças todas são ancestrais e habitam nossos corpos desde sempre. De viemos, para onde vamos? São perguntas básicas, filosóficas, de todos os seres humanos e permeiam toda arte, não importa se você faz dança isso, dança aquilo, dança aquilo outro, ou teatro isso, teatro aquilo ou teatro aquilo outro. São questões que habitam os corações nos acompanham desde sempre. Eu acho que voei um pouco não é?
Um fator importante ao refletirmos sobre uma arte performática é considerá-la como parte dessa grande rede de relações ou rede de tensões que configura a vida e o mundo e que flui e muda constantemente. Não existe uma coisa apartada de outra. As coisas só existem porque estão em relação, se tensionando, se casando ou conflitando, mas sempre uma coisa em relação à outra.
Eu queria ressaltar que também sofri outras influências além da dança butoh. Antes de 1987, ano em que fui para o Japão, eu já tinha entrado em contato com outras modalidades de artes performáticas. Já tinha estudado um monte de coisas: dança clássica, várias modalidades de dança moderna, artes marciais, yoga, tai chi e teatro. Antes de ter conhecido o butoh em 1986 quando Kazuo Ohno e seu filho Yoshito apresentaram La Argentina e Mar Morto em Brasília eu estava experimentando junto com algumas pessoas aí em Brasília, onde vivi por 25 anos, uma pesquisa do movimento e do corpo que quebrava com os cânones existentes, cânones esses que vinham da dança clássica, e mesmo do teatro. A gente estava procurando criar a partir de nossas próprias coisas, das nossas próprias vontades e concepções de vida, concepções estéticas e éticas. Éramos jovens loucos para se expressar, saindo de uma ditadura, de extrema censura, de proibição, de falta de liberdade própria daqueles "anos de chumbo".
EH: Gostaria de fazer uma pergunta, de como a dança butoh, qual a influência que a dança butoh exerce em você e no Taanteatro.
MB: Já se passaram muitos anos e a influência do butoh no meu trabalho foi mais forte no período entre 1987 e 1995.
(Maura Baiocchi falou sobre a questão dos corpos brancos, da maquiagem e disse que no Japão nem sempre predomina a maquiagem branca. Mas ela conta que um dos objetivos de se pintar o corpo todo de branco era neutralizar a identidade do performer. Outra influência foi a lentidão do movimento. Kazuo Ohno falava que o caminhar lentíssimo vem do respeito por se estar caminhando sobre os mortos quando se dança).
MB: Vamos falar um pouco sobre o Min Tanaka. O Min Tanaka uma vez passou um exercício criativo a partir da seguinte imagem: um mendigo andando na rua bêbado e que precisa encontrar um lugar para mijar, para se aliviar. Só que era para imaginar a cena de ponta cabeça, com os pés rumo ao céu. A poética crua de Min sempre trazia a rua com os seus habitantes à margem da sociedade. Hijikata também retratava essas personagens. Já Kazuo Ohno, trabalhava com imagens poéticas protagonizadas por fetos sendo gerados no útero materno, do nascimento, da morte, da figura materna… .
A identificação deles com as imagens poéticas que propunham era muito grande e importante não só para a criação de coreografias mas até mesmo para definirem e conceituarem seus estilos. Eles produziam imagens incríveis para todos trabalharem, mas chega um momento que você quer trabalhar as suas próprias imagens, não quer trabalhar as imagens do seu mestre ou do seu professor ou do seu coreógrafo, você quer contribuir também.
Nos processos criativos de coreografias e cenas incentivamos os performers a criarem suas próprias imagens poéticas. Isso não era possível quando a gente trabalhava com Kazuo Ohno, isso também não era possível quando a gente trabalhava com Min Tanaka. Quando coreografo elenco, eu abro mão, muitas vezes, das minhas imagens e me concentro em organizar o produto que surge a partir de sucessivas improvisações dos performers. No taanteatro, no âmbito do treinamento corporal, as imagens são compartilhadas. Por exemplo, você visualizar que seu corpo é líquido ou sólido, gasoso, viscoso ou ígneo e criar danças a partir daí. Nós desenvolvemos técnicas dentro de uma prática que chamamos Mandala de Energia Corporal (MAE) que exploram os estados da matéria no corpo.
Acho que o butoh me incentivou a continuar a independência criativa no seu mais amplo sentido. E assim eu dei cada vez mais asas à imaginação e criei as práticas de treinamento do taanteatro como MAE, Zerar, (des)construção de performance a partir da mitologia (trans)pessoal, caminhadas, ecoperformance, rito de passagem e a nossa abordagem conceitual que inclui as noções de pentamusculatura ou ecorporalidade, tensões, esquizopresença, eterno originar, entre outras - veja bem, a prática vem sempre antes dos conceitos, aos quais chamamos de conceitos que dançam, porque são dinâmicos, em aprimoramento.
A dança butoh tem um componente importante para o processo criativo de performances solo que poderíamos chamar de processo de subjetivação ou individuação. Nos convida para um mergulho radical em nós mesmos. Mas é um mergulho que funciona, muitas vezes, como uma limpeza, um expurgo, um esvaziar-se de si mesmo. Acredito que o butoh tenha sido influenciado pelo Zen.
Em 2014 eu realizei uma eco-videoperformance que se chama CO[R]PO. Está sendo editada somente agora. Imagina que você é um copo. Que seu corpo é um copo cheio de líquido. Esse líquido é suas ideias, sua visão de mundo, seus sentimentos. Quando criamos uma obra a partir de nossos conteúdos é como se nos embriagássemos de nós mesmos. E isso é adubo é o esteio de sua obra de arte. E durante um processo criativo retemos e transbordamos conteúdos o tempo todo, alternadamente. Acredito que todo artista é como um corpo-copo que retém e transborda. Ao transbordar se esvazia, e esse estado vazio também importa, tanto para processos criativos como para a preparação corporal.
O conteúdo de um corpo configura uma poderosa micropolítica. Como você sente é como você interpreta o mundo. Como você sente é como você vê o mundo. Tanto um butoista quanto um performer do taanteatro criam a partir dos seus próprios sentimentos, das suas próprias razões e pensamentos, mas também a partir de seus vazios. E à medida que você vai se expressando, vai se esvaziando, vai transbordando, vai se tornando público, vai compartilhando suas forças e formas para que outras pessoas possam desfrutar delas também. Você entendeu?
EH. Sim.
(Maura volta com um copo e diz)
MB: Oi! fui buscar mais conteúdo para, que aquele já acabou.
EH: para se preencher...
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Fim da primeira parte.
Nota: Este é um fragmento de sete páginas já revisado, mas, nosso encontro gerou 23 páginas de diálogos, já transcritos, que estão sendo cuidadosamente revisados, pois tenho interesse em inserir esta entrevista em minha dissertação. À medida que nós concluirmos a revisão, será postado como comentário nesta mesma postagem.
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