Entrevista com Cristina Matamba (Por Ivana Motta)
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS - UnB
Disciplina: Metodologia de Pesquisa
Docente: Prof. Dr. Marcus Mota
Entrevista realizada dia 27/10/2020 as 18:00 via plataforma Zoom.
Entrevistada: Cristina Matamba
Entrevistadora: Ivana Motta
Ivana Motta: Bom, eu queria primeiro te agradecer por aceitar esse diálogo comigo. Faz muito tempo que a gente não se comunica... Tivemos aquele encontro em 2005, na companhia da Daniela Stasi e você foi uma das minhas primeiras professoras de danças afro.
Cristina Matamba: Já? Nossa 2005!!!
IM: Pois é! [Risos] É bem importante te escutar porque, como eu disse para você, agora eu tô entrando nesse território acadêmico pra este mestrado, mas querendo falar também das minhas vivências, relacionar espaços e pessoas dentro e fora da academia.
CM: Se eu puder ajudar, pq eu não sou… eu sou da prática, né?
IM: Com certeza você vai ajudar. Vai ser importante ouvir você falar desta tua trajetória e como você vê algumas questões. Eu te mandei aquelas perguntas por e-mail e eu tô com elas abertas aqui. Elas ficam como roteiro e a gente vai construindo essa nossa conversa.
CM: Tá certo.
IM: Cristina eu queria que primeiro você me dissesse como você quer ser apresentada.
CM: Eu sou Cristina Matamba, eu sou dançarina, coreógrafa e arte educadora. Sou formada em educação física. Atuo com as danças negras, dança afro contemporânea, desde os anos 80, na cidade de São Paulo.
IM: Pode falar um pouco da sua história como artista e como arte-educadora?
CM: Ah então, eu comecei na década de 80, né? Iniciei fazendo aulas no Sesc e foi aí que eu tive contato com a dança afro. Até então eu nem conhecia a dança afro. Porque eu era jogadora de voleibol, desde os 13 anos. Eu fui chamada para jogar na Portuguesa e sempre joguei profissional, então a minha área era esporte. Eu sempre tive teve técnicos rígidos, muito, muito rígidos. Eu joguei no Sírio, na Portuguesa, joguei em Suzano, em lugares assim. Ao todo foram 10, 12 anos e depois eu parei porque eu não cresci. Aí começaram a chegar aquelas meninas de 15 anos gigantescas e eu fazia meio, eu não era levantadora. Então eu e mais uma colega minha tivemos que parar e foi para mim muito sofrimento, porque era minha vida, era minha vida. Aí uma prima minha falou assim: "Vamos, eu tô fazendo aula no SESC de dança afro". E eu: "O que que é isso?” Porque eu dançava samba rock na minha família, dançava muito bem samba-rock que meu irmão me ensinou desde os 11 anos, mas dança afro, o que é isso? Então comecei fazer aula no Sesc Carmo, na praça da Sé, e lá eu conheci uns dançarinos. Foi um dançarino de lá que percebeu que eu tinha jeito, o Marcelo, e me chamou para o meu primeiro grupo que foi o Abandalá, né? Depois nós dois fizemos teste para outro grupo que foi o Batá-Kotô. Ficamos anos no Batá-Kotô e depois nós não ficamos mais em grupos. Em 1990 eu tive meu primeiro contato com as danças africanas, em São Francisco, na Califórnia com o congolês Malonga Casqueloard e as haitianas Blanche e Linda, fiz aulas com elas. Achavam que eu era africana, porque eu frequentava as festas de africanos na USP e sabia dançar Malonga. Então eu vi que temos algo dos nossos ancestrais em nossa essência. Eu também fiz uma campanha publicitária da C&A com José Possi Neto, Sebastian, eu e outros dançarinos e atores negros. Nós fizemos essa campanha por seis meses, nós éramos os dançarinos e lá era mais o Jazz, né? E nós dançávamos, estudávamos um pouco de afro, mas era mais a partir do Jazz. José Possi adora trabalhar com negros, né? Então fez a gangue do Sebastian, nós éramos a gangue do Sebastian. Eram muitos, muitos artistas negros, Adriana Lessa, Cris Vianna... vários. Fizemos todos juntos essa campanha durante seis meses e foi muito boa, muito boa mesmo. Depois eu aprendi o hip-hop com Tatiana Sanches e com ela eu aprendi muita coisa na forma de observar a dança, de ensinar. Em paralelo a isso eu sempre trabalhei em projeto social. Eu trabalhava no banco Banespa, que hoje é Santander e lá tinha um projeto que eram crianças e adolescentes de comunidades inseridas nas estatais. Então nós dávamos aulas. E eu dava educação física. Aproveitava e dava dança. Introduzi a dança afro, fazia várias apresentações, fazia festivais com eles de música. Depois acabou o projeto e eu virei bancária. Mas paralelamente eu trabalhava em outros projetos. E sempre dando aula em projetos, workshops... e foi assim. Agora eu estou em um projeto, não estou como educadora, estou como oficineira ainda, e estou lá no Odara, mas nós estamos parados no momento.
IM: E a sua trajetória de criação? Como é o seu trabalho criando, coreografando…
CM: Então como coreógrafa eu não trabalho muito, muito. Trabalho mais como professora de dança mesmo, assistente de coreografia. No Batá-Kotô eu era assistente de coreografia. Atuei no programa "Axé se Liga Brasil" na [TV] Bandeirantes, né? Era passado todos os sábados. Lá eu era assistente de coreografia além de dançar. Também fiz algumas coreografias no programa. O grupo Raízes de Ketu, que hoje é Odara, já tem uns 30 anos, quase 30 anos esse grupo. No início quando ele foi fundado, eu coreografei. Depois de anos eu me afastei. E o Márcio que é o diretor, produtor e também coreógrafo ele é pai de santo, então ele coreografa também a partir desta vivência, ele seguiu com esse grupo e sempre modificando, alterando. Ficaram as mesmas coreografias mas ele alterava algumas coisas. Nos encontramos o ano passado e ele me chamou para fazer um resgate do Odara, antigo Raízes de Ketu, e algumas coreografias ainda eu eram as mesmas de 20 anos atrás. Eu alterei várias coisas, criei outras coreografias. Na parte dos orixás... eu não sei se você chegou assistir o espetáculo, né?
IM: Assisti sim.
CM: Então, é como se fosse uma aula de história. Na parte por exemplo dos orixás... Eu Danço orixás. O que você pedir para eu dançar, eu danço. Agora a teoria, saber direitinho sobre os orixás… sei os vários tipos de danças dos orixás, porque não tem só uma, né? Você tem que saber o original para traduzir para o contemporâneo, porque se não vira o candomblé, né? E aí foi o Márcio. Ele, além de diretor e produtor, é pai de santo. "Eu quero isso, aquilo..." aí eu fui com ele fazendo, mas a parte dos orixás foi mais ele mesmo, principalmente no espetáculo. Então de coreógrafa é mais isso mesmo.
IM: Acho que você já entrou um pouquinho na minha próxima pergunta... Mas como você entende essas relações da tradição e da contemporaneidade nas produções artísticas negras? Como é para você trazer isso, esses signos, símbolos, os vastos elementos da tradição para o palco, para a sala de aula? Acontece isso no seu trabalho?
CM: Então, além dessa vivência da parte religiosa eu tive a vivência da parte, por exemplo, das danças africanas. O que são as danças africanas? As danças africanas são danças de determinadas regiões... Por exemplo: Esqueci de falar que tive outros grupos, o Kamberimbá e o Ballet Afro Koteban. Mas no Kamberimbá eu coreografava danças da Guiné-Conakri. Eu nunca fui pra Guiné-Conakri, mas eu tive contatos com os dançarinos. Fiz as danças e descobri que a dança africana é um outro corpo, totalmente outro corpo. Bem diferente das nossas danças. Então você tem que ir resgatar, buscar e estudar mesmo. Como um músico tinha ido para lá, então ele ficava falando para mim quando eu coreografava: "Isso tem a ver, isso não". Fora o que eu tinha estudado, né? Estudei as danças da Guiné-Conakri, eu queria passar mais a dança de forma realista. Aí eu descobri vários dançarinos, Youssuf Kombassa, Fanta Konaté, Mariama Camara. E as danças, por exemplo, na cultura africana para tudo eles dançam. Para plantar, quando nasce, quando os jovens vão se tornando adultos, todas estas situações tem a dança. Então observei em 3, 4 dançarinos diferentes que naquelas danças tinham 1, 2, 3 passos que eram iguais. Então eu falei "É a base". É como se fosse, por exemplo, o côco. O côco a gente faz sempre o mesmo movimento base. A dança toda, se você for contar, tem uns 5 movimentos. Uma vez eu fiz um curso de côco com meu amigo, mas toda aula era só repetir aquilo, aquilo. E eu ficava: “Gente, não pode dar uma virada, colocar um pé ali?” Mas era a base. 3, 4 movimentos. E toda aula era aquilo. A dança africana também é assim, são mais ou menos 5 movimentos. Então, estudando o Youssuf Kombassa, ele não mora mais lá [na Guiné-Conakri] mas ele sempre volta para resgatar e para conversar com os mais velhos. Então eu vi um vídeo dele uma vez em que ele perguntou para um senhor mais velho da Aldeia: “Eu tô modificando, acrescentando movimentos. Por que são mais ou menos cinco passos, eu preciso de mais elementos para montar um espetáculo ou mesmo uma aula.” E o senhor [disse] que tudo bem. Que é isso mesmo, você tem que se modernizar, avançar. Então você pega a base. Vi em vários dançarinos, vários tipos de danças deles. “Ah, esse movimento tem em todos. É um pouquinho diferente mas esse [movimento] é a base. Então esse tem que ter.” Quando eu coreografava aquele ou aqueles movimentos tinham que ter. E os outros eu ia inovando ou modificando alguns deles. E sempre com a orientação deste músico que foi e vivenciou. Aí fui estudando, estudando e criei várias coreografias para o grupo. Uma vez nos apresentamos com o nosso grupo, o Kamberimbá, e trouxemos Mamady Keita, que é um músico. Os meninos do meu grupo eram a maioria brancos, né? Inclusive esse que foi pra lá [para Guiné-Conakry], e tinha um que financeiramente era muito bem de vida. Então ele que pagou a estadia, a vinda do Mamady Keita para cá. Ele se apresentou e nós dançamos, fizemos a abertura. Só que Mamady Keita não se deixa filmar, não pôde filmar então a gente não tem registro. Depois que a gente se apresentou eu falei: “Nossa, um Djembefola! Eu vou perguntar o que ele achou da nossa coreografia, se tem a ver, se ele gostou da nossa apresentação.” Aí ele falou que gostou, que tava tudo bem, que tava tudo certo. Eu pensei “Ufa!”. Então eu penso que a partir da essência, você pode ir transformando, mas sempre pegando a ligação da essência, não deixando ela de lado.
IM: Mas o que você chama de essência? São os movimentos base que você encontrou em suas pesquisas?
CM: Não só os movimentos… Eles são a base e a essência da prática, vamos dizer assim. Mas tem também algo do corpo que movimenta, cada corpo que experimenta. Este movimento com o corpo, sem a essência não te passa nada, entendeu? É porque o movimento, o conteúdo daquele movimento... isso que eu falei anteriormente, a dança africana é outro corpo. Então têm que buscar esse outro corpo, é lá de dentro. Cada um vai encontrar essa essência no seu corpo.
IM: Certo... Que legal essas vivências com Mamady Keita, com Youssuf Kombassa. Várias experiências para contar, bacana te ouvir sobre isso.
CM: É, mas tem uma perguntas aí que você fez sobre política, social, essa parte… eu não sei o que dizer disso não! (rRsos)
IM: (Risos) Nada… acho que é observar sua prática e como ela mexe no cotidiano das pessoas, no seu… isso pra mim já é a arte dialogando com o social, com o político nos diferentes contextos que você atua. A gente fala disso depois. (Risos)
CM: (Risos) Sim... tá certo...
IM: Você tá em São Paulo agora, né, morando e trabalhando?
CM: São Paulo, isso.
IM: Como é que você vê o trabalho das danças negras em São Paulo, de artistas negras/negros, de professores negras/negros? Você tem alguma visão desse cenário? Eu tô em Brasília agora, tem alguns artistas, coletivos, que discutem, criam nessa estética negra, mas não ocupam os espaços mais visibilizados do trabalho de dança de Brasília. Inclusive eu já entrei em várias discussões, em vários espaços, cadê as danças negras, cadê as/os professores/professoras negros e negras que estão dando aula de dança negra, cadê, cadê, cadê… Onde estão os espetáculos que trabalham com essa estética, ainda é uma militância muito grande de artistas negras/negros que estão nessa construção para abrir esses espaços. O que mais a gente ouve é que tem sim, mas aí elencam uns 3, 4 que são as exceções que confirmam a regra de que estas pessoas não estão de fato lá, ocupando e compondo junto.
CM: Você conhece o Júlio [Júlio César - artista/educador das danças negras que atua em Brasília]?
IM: Conheço, conheço sim!
CM: Ele dançou comigo no Bandalá, nosso primeiro grupo, e no Batá-Kotô. A gente tem uma trajetória a vida toda, desde a década de 80...
IM: Júlio tem um trabalho muito forte aqui… Então, eu queria que você falasse um pouco como vê isso em São Paulo.
CM: Ultimamente eu não estou dando aula. Estou mais no Odara mesmo e as vezes eu dava um workshop ali outro aqui antes da pandemia. E tô em projetos sociais. Aula há muito tempo que eu não dou porque eu quero criar um espaço. Não quero dar aula em academia mais. Eu quero um espaço diferente. Quanto aos grupos a dança negra aqui em São Paulo evoluiu muito, muito, muito. Porque na minha época, eu tenho 55 anos, eram poucos os grupos, uma meia dúzia digamos assim. Hoje não. Hoje se expandiu muito tem muitas pessoas dando aula. E tem muitas pessoas que montaram grupos, coletivos.. Só que aqui em São Paulo a dança negra não é muito unida não, nunca foi né? É uma disputa sim, não direta, mas cada um para si. Agora, sobre as aulas, tem pessoas muito boas e tem pessoas sem preparo, mas estão dando aula. Porque em alguns lugares a dança se tornou assim para queimar gordura. Então é isso que importa. Não é isso que eu quero. Então tem muita gente que está dando aula assim, despreparada. Agora é moda a dança africana, essa que eu falei da Guiné. Quem começou foi a Fanta [Konaté] que é da Guiné-Conakri, ela que chegou aqui em São Paulo primeiro e divulgou a dança. Depois chegou a Mariama [Camara]. Dançamos juntas no Kamberimá, depois ela saiu em carreira solo. Mas o que aconteceu? Youssuf Kombassa e outros dançarinos africanos têm vídeo aulas, então vários alunos assistem as vídeo aulas, decoram e se sentem prontos pra dar aula. Aqui tem um monte de gente dando a dança africana da Guiné-Konacri, brasileiros e tem os africanos também. Mas como eu te falei anteriormente, a dança africana é outro corpo, não é o quadrado. Tem uma essência lá dentro que você tem que pegar, nós negros já temos esta essência. Você tem que pegar detalhes dos movimentos e é isso que esse pessoal não está pegando. A dança da Guiné-Conakri é muito energética. É muita, muita energia. Só que o que eu passo para os alunos: a dança africana e a dança afro não é só energia, tem as sutilezas. A dança da Guiné-Conakri, ela tem as sutilezas, ela tem um quadril... em algumas danças que o pessoal está dançando isso se perdeu totalmente. Eu também assisti a vídeo aula, eu não fui pra Guiné. Mas eu desenvolvo vários estudos, eu tenho minha prática que não é de hoje. Só que essas pessoas assistem a vídeo aula e não pegam a essência do movimento. Muitas vezes não é uma dançarina, uma professora que teve a vivência, é uma aluna que dança bem, que pega rápido, tem uma energia e se sente pronta para dar aula. Tem uma ex-aluna minha, que é branca, que montou grupo, ela tem dançarinos maravilhosos mas são mal trabalhados, vamos dizer. Ela faz sucesso, faz apresentação aqui em São Paulo inteira. Só que você assiste, você que é dançarina, você que entende da essência, não te passa nada, entendeu?
IM: Veja se estou entendendo: você tá dizendo que o movimento, mesmo quando ele é vigoroso, ele não é só essa energia, tem essa essência, né? Eu posso entender essa essência como a expressividade deste movimento, deste gesto?
CM: É, isso… porque a dança afro e a dança africana tem vigor, força, muitos movimentos energéticos, mas ela também tem gestos sutis. Então não é só pá, pá, pá…Na dança africana tem essa mão [faz um gesto sutil e leve com as mãos rotacionando os punhos], tem esse corpo [faz uma ondulação suave e lenta de coluna]. As vezes a música está pegando solta, mas tem esse movimento [repete o gesto suave com as mãos]. Você quebra o movimento em 4 [tempos] para trás, entendeu? A música tá lá, pegando fogo mas a coreografia pode ser assim ó: [faz um movimento sutil e lento, ondulando braços e coluna; o foco do olhar muda para diferentes direções]. 4, 8 tempos para trás. Então é isso que eles não tem. Tem uma dança da Guiné-Conakri que os dançarinos e as dançarinas fazem uma torção suave de quadril quando vão mudar o movimento. Essa minha ex-aluna que montou uma companhia, que eu falei anteriormente, ela colocou essa coreografia mas não captou esse movimento, que é essencial. Você olha todas as bailarinas e você vê que o movimento é assim. Então não sabe captar essa essência e isso é muito necessário, são os DETALHES [fala de forma enfática]. E todos os movimentos, sejam sutis ou energéticos, tem essa essência da expressão mesmo… mais ou menos pensar: “O que este movimento está falando?” De onde ele nasce, de que lugar, com quais motivos, digamos assim. E aí entendo que o corpo negro tem essa bagagem ancestral mesmo, esse corpo fala disso… diferentes dos corpos brancos, pessoas não negras que vem dançar dança afro. Eu vejo diferença, nessa essência… Cada corpo vai encontrar algo, mas os corpos negros estão em conexão com estas práticas, com estas danças… de forma ancestral, uma memória. E não precisa ser uma memória muito longe, porque minha casa sempre teve dança, e dança preta. Minha vó, minha mãe, minhas tias, meu irmão... sempre esteve no meu dia a dia, por exemplo. Mas tem coisas que a gente faz e dança até hoje que são de nossos ancestrais mais antigos também. Então parece que é um registro, algo assim. Que está no corpo.
IM: Ah, entendi. Eu já ia te perguntar mesmo sobre a questão da corporeidade negra…
CM: (Risos). Já me adiantei. Mas eu acho que ainda sobre esta coisa da tradição e da contemporaneidade… eu sempre falo que dou aula de dança afro contemporânea, eu não falo que dou aula de dança africana. Eu não sou africana, tudo que eu aprendi estudei, vejo, aprendendo com os africanos. Eu entendo que preciso saber de onde vem a dança que eu trabalho, de qual região, qual tribo… é uma coisa muito extensa dar aula de dança africana. Você não pode falar que dá aula de dança africana. Mesmo pra quem está no continente [africano], é uma coisa muito extensa, muito variada de uma região para a outra. Pra você dar aula de dança de um determinado lugar você tem que saber muito sobre aquilo. Eu conheço gente da Guiné, do Senegal, da Nigéria, Moçambique, Angola, mas não digo que eu dou aulas de dança africana. Olha quanto conteúdo eu tenho para criar, para pensar uma África contemporânea. Mas você tem que saber de onde vem, pesquisar, ter esse conhecimento para poder criar sobre uma base. Nunca! Jamais eu vou dizer que dou aula de dança africana. Eu dou aulas de dança afro contemporânea e estou aprendendo ainda. Ainda tenho muito o que aprender.
IM: Quem são suas referências no trabalho que você desenvolve, seja criando, seja dando aulas?
CM: Então, uma pessoa muito importante foi o Macalé, meu primeiro professor, que introduziu a dança afro pra mim. Depois foi [Firmino] Pitanga. Um coreógrafo, professor, diretor rígido… eu peguei esse lado dele pra mim. Mas quando eu digo rígido, é porque ele dava atenção à limpeza da coreografia…
IM: Um critério, né?
CM: Isso, critério pra fazer o que ele queria e bem feito pra apresentação. E ele exigia, cobrava, trabalhava com a gente pra isso. Mas eu ia guardando: “Isso eu quero pra mim, isso eu não quero”. Ele nem sempre corrigia os movimentos, corrigia as pessoas. Assim, falando da técnica. Tinha gente que trabalhava 5, 6 anos com ele e não saia daquele nível. Porque a pessoa também não ia atrás, estava lá porque gostava da energia. Mas muita gente se machucou, joelho. Ele dava muito salto e o pessoal não sabia saltar. Mas ele foi uma referência maravilhosa pra mim, tanto do lado bom, quanto como não bom, pra eu ir decidindo o que eu queria para mim, eu não dava aulas ainda. Ele trouxe Clyde Morgan para São Paulo fizemos vivências ótimas com Clyde. Quem trabalhou com a gente no Batá-Kotô, montou coreografia foi Mário Gusmão. Fomos para a Coreia, ele foi junto. O Batá-Kotô foi representar São Paulo no aniversário de Seul, porque São Paulo é cidade co-irmã de Seul. Ficamos lá quase 20 dias, foi maravilhoso conhecer outros lugares, outras culturas, outras danças Tem Mestre gato de Salvador, Augusto Omolú, Zebrinha, Mestre King, Nildinha [Fonseca]. Fora estes vários dançarinos africanos que eu falei antes… Alvin Ayley. Tem uma coreografia de afro contemporâneo dele que eu estudo bastante… tenho livros dele, sobre a companhia…E músicos, né? Salif Keita, Mamady Keita…
IM: Você compartilhou que sempre trabalhou em projetos sociais, né?
CM: Sim, sempre. Desde os anos 80. Foi uma das minhas primeiras experiências dando aulas.
IM: E sempre dando aulas de danças negras, dança afro contemporânea?
CM: Sempre.
IM: Como é o diálogo das alunas e alunos destes projetos com as danças negras?
CM: Então… [Risos. Uma pausa mais longa. Suspira.] Desde da década de 80 que eu comecei nos projetos sociais. Comecei a introduzir essa parte [da dança] negra e foi bem aceita por eles. Nós formamos 11 turmas neste projeto, aquele que eu falei anteriormente que era do Banespa. Mas ele era diferente do que eu atuo hoje. Eram várias aulas, português, matemática, educação física só que nós interagimos, os professores, trabalhávamos sempre interligados. E isso deu muito certo. Eu fiz festival de música com eles, fiz apresentação de dança afro junto com o educador de teatro. Esse projeto deu muito certo. Agora, outros projetos foram mais difíceis. Trabalhei em um projeto em Ferraz de Vasconcelos e toda vez que eu chegava diziam: “Olha, a macumba chegou”. Aí você tinha que explicar, quebrar este preconceito, né? Acho que os educadores durante a semana, eu ia somente aos sábados, não trabalhavam esta questão. Apesar de serem envolvidos com movimento negro, acho que não trabalhavam isso. Porque todo sábado era igual. Sempre tinha adolescente novo e isso acontecia, era aula de macumba. Era mais aula de explicação do que aula de dança mesmo. Atualmente estou atuando em uma comunidade. Tem vários projetos dentro da comunidade e só um tem uma quadra. Eles emprestam pra nós, uma vez por semana. Então eu vou com eles [os alunos e alunas] uma vez por semana na quadra. A gente tem que atravessar a favela toda pra chegar lá. Vou eu com aquela turma de 30 crianças de 6 a 14 anos atravessando a favela. Vou sempre conversando com eles. Um dia uma menina falou pra mim: “Tia, não respira!” Eu fiquei surpresa, falei: “O que foi menina?” E ela me disse “Aqui tem uma casa de macumba”. Tem mesmo no trajeto, duas casas com as ráfias na frente, não sei se umbanda ou candomblé. A menina falou “Se você respirar você vai morrer”. Toda vez que a gente ia pra quadra era isso. Aí eu fui conversando aos poucos com ela. E também perguntei pras educadoras se elas trabalham estas questões, elas disseram que sim mas que a maioria deles não aceitam porque são evangélicos. Falam que são coisas do demônio, de diabo. Com essa menina, aos poucos eu fui perguntando “Ninguém na sua família vai [na religião de matriz africana]?” ela disse “Meu tio vai”. Comecei a conversar com ela, se ela via algo de mal no tio, se o tio fazia mal pras pessoas, pra ela... e ela foi dizendo que não. Aí tentei que ela visse, por esta vivência com o tio, né, que não é nada de demônio não. Falei que tem comida boa lá, que as pessoas vão buscar algo que faz bem pra elas e que a gente tem que respeitar isso. Mas aí ela começou a dizer que eu era [da religião de matriz africana] e eu falei “Não, não...” Ela já tava começando a me excluir e eu não ia mais conseguir conversar com ela. Deu trabalho, mas depois ela parou de falar isso. Às vezes eu dou capoeira, dou a dança afro, sem falar nada, eles fazem muito bem e eu fico calada. Eu ponho muita música africana, até pra eles se aquecerem também, mas não falo que é música africana. (risos). Eu já dei movimento de Oxum, falei pra imaginar o espelho, rodar assim, soltar o quadril… fizeram lindamente, inclusive as evangélicas lá, fazendo… (risos).
IM: Mas você não acha isso problemático, não contextualizar essa prática? Porque como você mesmo diz, ter noção do motivo deste movimento, de onde ele vem é importante…
CM: É uma coisa que eu uso agora. Eu quero poder falar pra eles das histórias, dos símbolos desta cultura, mas se eu fizer isso agora não conseguirei nada com eles. Porque eles já acham que eu tô falando da religião. E tem essa coisa, “É do demônio”, é uma resistência. Ali tem que ser aos poucos. E tem muitos jovens e adolescentes negros neste projeto, nesta comunidade… mas é isso que eu encontro lá. É um trabalho muito cansativo. Eu estava em outro projeto com crianças pequenas, nesta mesma comunidade. Elas adoravam dançar… os pequenininhos. Eu fiz coreografia de dança afro, se pintaram, se apresentaram e não teve problema. É a mesma favela, só que projetos diferentes. Nesse projeto eu estou um pouco sozinha, mas as educadoras até que são bem dispostas… porque quando o projeto assume falar também dessas questões, fica mais fácil. Mais fácil se for uma rede… sozinha é muito cansativo. (risos)
IM: Sim, sem dúvida! Entendo... Ainda tem muito trabalho a fazer. Nada tá pronto, essas vivências nos mostram isso. Cristina, muito obrigada por esta entrevista. Foi importante ouvir você, Fico à disposição se você achar que eu posso colaborar em algum projeto seu por aí, apesar de estar em Brasília. A gente vem descobrindo formas de estar junto, né? Agora também reativamos nosso contato, sabemos como nos achar. (risos)
CM: Claro, tá bom. Muito sucesso nas suas trajetórias aí. Se precisar de mais alguma coisa que eu possa ajudar, é só falar. Tomara que seu exercício dê certo, que seu professor goste. Foi bom encontrar você de novo.
IM: Foi ótimo, fiquei muito feliz! Muito obrigada! Ótima noite pra você!
CM: De nada! Beijo! Tchau.
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