Né de Teodósio, o folião rezador [Entrevista por Cícero Félix]

 



Conheci Seu Né de Teodósio em 2015, em sua casa no Morro do Guará, comunidade rural do município de Canápolis (BA), através de um amigo que queria me apresentar alguns foliões de chula que moravam nos vales da bacia do Rio do Corrente. Daquele encontro guardei a memória de um homem de poucas palavras e um folião pouco disposto a mostrar o que era chula fora do seu espaço de manifestação. Fiquei sem saber, mas não desisti.

Dois anos depois, em fevereiro de 2017, encontrei Seu Né em um grupo de chula na Folia de Nossa Senhora do Livramento. Nessa manifestação, descobri que, além de folião, ele era também rezador, e de rezas em latim. No mesmo ano o encontrei na Folia de São Sebastião, orientando uns foliões sobre o bailado da chula. Disse que queria entrevistá-lo, mas não ali, para não atrapalhar o giro. Daí parcamos para uma hora dessas. Em maio do ano passado, depois de uma tentativa frustrada, consegui, enfim, entrevistá-lo.

O homem de poucas palavras que conheci há quatro anos, agora não economizou na conversa. Recentemente, ao transcrever o áudio para o formato de entrevista, decidi rever o audiovisual da própria entrevista e das duas folias que eu havia registrado em 2017. A partir dessa apreciação, montei a entrevista-documentário no link acima, intitulado Foliãorezador, em um justaposição de termos que traçam sua personalidade que transita entre a brincadeira da folia e a seriedade da reza. Abaixo, segue a entrevista de acordo com o filme, divida em tópicos e transcrita em linguagem próxima da falada por Seu Né.

 

Seu lugar, sua raiz

Eu nasci 21 de março de 1939. E aí vivi na vida da roça toda vida. Meu pai era lavrador muito fraquin. Como diz: num tinha condições de colocar nóis ni um estudo mais avançado. Foi colocando nóis (era eu e meu irmão, que somos dois irmãos, eu e meu irmão Josias); e aí nós estudemos nessas escolinha particular poucos mês. Eu aprendi mais foi em casa, estudando em casa. Eu morava perto de um professor, Francisco Ferreira Lima, que era uma pessoa que tinha muita boa vontade ensinar. Ele ensinava leitura e doutrina.

Cresci nessa habituação. E até chegou o ponto de casar. Ranjei vários casamento por aí afora, mas a que era minha tava aqui, mas eu num sabia se era. Eu tive casamento com uma moça do Cafundó dos Crioulo; tive casamento com outra moça daqui de baixo, que morava aqui no Barrêro, lugar chamado Barrêro do Guará; mas nada deu certo com ninguém.

Nasci aqui no chamado Olho d'Água dos Correia, ali a mais adiante. Até que a casinha onde eu... tá lá, minha casinha, no mesmo terrenin que aonde eu fui nascido. Fui nascido e criado aqui mesmo nessa região. E nunca saí. O lugar mais longe que eu fui foi em Salvador, que no tempo do padre Antônio, nós foi numa reunião lá em Salvador, Mar Grande, o lugar aonde a gente era reunião. Depois desse lugar, o lugar mais longe que eu já fui foi ali na Lapa do Bom Jesus.

Meu pai chamava Teodósio de Almeida Corte, a minha mãe Maria Rodrigues de Souza, mas o telebião, telebião [risos] colocou Maria Rosa de Souza. Mas o sobrenome dela era Rodrigues. No documento meu tá Maria Rosa de Souza. Meu pai também foi nascido e criado aqui, nessa região. Trabalhou muito longe, assim, no Cafundó dos Crioulo. Fez plantio de feijão da seca, porque aqui num tinha gradie. Então ele trabalhou lá, mais um senhor de Joaquim do Cunha chamado, lá na cabecêra do Cafundó dos Crioulo. Então, o meu avô materno era Marcelino, chamava Marcelino. Até que não sei nem sobrenome dele... e a avó materna chamava Maria também, que antigamente o nome de Maria e de Ana, né?, era os nome que povo mais usava.

Pega no dente de cachorro

A minha mãe, ela dizia que a bisavó dela foi pegada de cachorro, era índio. Minha eu já num sei mais o quequié, né?! Foi pegada, no dizer deles, através de cachorro. Por que qui eles diziam que foi pegada de cachorro? Num sei. Mas eles dizia qu’éra descendente de índio. E minha mãe, tanto ela qui nem uma irmã qu’ela tinha, era bem morena, e um cabelo bom, provavelmente é descendente mesmo dos índios. Então, a gente, mais ou menos, tem um sanguin desse povo.

Do tempo da missa em latim

Participei várias vêiz. Naquele tempo era Monsenhor Félix, de Santana, que rezava aqui na casa do mestre Veriço. Depois dele veio o padre Rodolfo, que iniciou celebrando a missa em latim e depois passou-se a ser a missa em português. Aí agora já mudou até o sistema dele. Que naquele tempo eles virava a costa pro povo e depois já deu para celebrar de frente com o povo e as costas virada pro altar. Muita gente achou errado, achou que era muito, mas tudo muda, né? Tem as mudança e tem o significado dessas mudança. Mas foi indo todo mundo acostumou. Mesmo que a gente não entendia o que era que ele dizia no latim, mas a gente tinha aquela atenção, néra?, de ganhar alguma indulgência mesmo sem conhecer o que é qui tava participando.

Rezas, tradição oral e ritual

A ladainha eu aprendi assim, com outras pessoas, rezando, né? Toda vida eu gostei de prestar atenção às coisa, aí eu participava assim em ladainha. Aqui na Lagoa dos Barata tinha Zeferina, que era uma mulher velha e gostava muito de rezar. Nos dias da Semana Santa ela vinha. Esse Francisco Ferreira Lima que eu tô dizendo, ele tinham uma cruz enfincada lá num lugar e fez um campo, um caminho de andô a redor.

Na semana da Quaresma, todos os dias de quarta e sexta tinha a santa via-sacra e lá no final da via-sacra rezava a ladainha. Mas rezava assim, de palavra, só de palavra. Aí eu aprendi. Continuei depois de adulto rezando mais os meus companheiro. Inclusive eu tinha aqui no Morro do Guará o compadre Benevides, que nós rezemo várias ladainha assim de festejo. Sempre o povo me colocava pra iniciar. E aí eu continuei mais ele, mas sempre ele só queria queu tivesse de frente mais ele. Então fazia as orações iniciais, o sinal da cruz, o Creio em Deus Pai, o ato de contrição e depois seguia a ladainha.

Sempre eu gosto de fazer um comentário e também fazer uma leitura de qualquer um livro religioso. Antigamente tinha um livro chamado Manual da Paróquia. Nele continha a leitura de cada festa, de cada festa religiosa ele tinha a leitura... A primeira leitura era feita de, ou que fosse dos Atos dos Apóstolos ou que fosse das Epístolas. Mas tirava um trechin ali, fazia a primeira leitura, depois vinha o evangelho, depois do evangelho a reflexão daquele mesmo evangelho. Sempre esse livro, Manual da Paróquia, já vinha preparado. A gente que tivesse esse livro já fazia todo esse movimento nas festas comunitária.

Muita gente, é como diz: mermo com pouca sabedoria, acontece que ranja um material que tem aquilo por escrito e ali baseia de fazer sempre por ali. A gente sabe que num tem quem sabe as coisa tudo a fundo, mas um pouquin que souber é bom a gente praticar. E aí é o que acontece com nóis: eu, Camilo. Nóis somo parente, um parente mei longe, mas somo parente e sempre toda a vida nóis seguimos a doutrina da igreja católica.

Missa vs ofício

Antigamente usava rezar o Ofício nas missa. No tempo que a missa era em latim, durante a missa o povo tava rezando o Ofício . Fazia de conta que a gente tava assistindo era o Ofício porque ali a gente num entendia nada do latim. Então fazê de conta que tava assistindo. Inda intendi – como é? -, participei várias vêis a missa acompanhado do Ofício. Mas mesmo que o Ofício num era colocado na, mas era exercitado na companhia da missa. Então a gente num intendia nada do latim, mas fazia de conta que tava assistindo a oração do Ofício de Nossa Senhora.

Antigamente, foi muito tempo no tempo do Monsenhor Félix, até mermo padre Rodolfo, que foi o sacerdote que fez o meu casamento, era de Santana e celebrava aqui nim Canápo, Cafundó. E se a gente chamasse ele aqui, nim qualquer uma casa aqui, fazer uma celebração de missa, era bom, pronto pra vir.

O lugar na missa

Hoje, cadê? Num tão querendo mais rezar missa assim na casa. Quinem, aqui tinha a festa de São José, várias vêis muito padre rezou aqui, a missa aqui. Depois quêsse padre Manoel chegou não quis mais. Disse: “Pra que é a igreja?”. A missa tinha que ser era lá, na igreja. Hoje é desse jeito, a gente tem que ir lá. Aí a minha imagem de São José foi pra lá pá igreja e tá lá, que o padre num quis celebrar a missa aqui. Eu panhei uma pequena, que lá na igreja tinha. A minha imagem grande ficou lá e eu panhei essa pequena porque eu digo: o que vale é o santo, num é o tamanho da imagem. Então, eu tenho aí imagem de São José aqui em casa, mas não é a da minha divoção. A da minha divoção ficou lá, na igreja.

Mulheres rezadeiras

Bom, como diz: várias vêiz, era mais as mulheres de que mais homi. Mas sempre, toda vida eu gostei de... Numa comparação: é dois par, né? para cantar ladainha e bendito. Dois par: é um homem e uma mulher, um homem e uma mulher. Sempre, toda vida, eu gostei assim. Aqui tem, pra nóis - que nem eu falei, antigamente era eu e o cumpade Benevides, depois Deus chamou ele -, mas hoje já tem Bastião, acolá, o Sebastião de Miúda chamado, que é um folião bom também, e rezador bom também. Hoje, sempre eu rezo mais ele. Ou então mais cumpade Geraldo, meu genro aqui. Quando um num tá, mas o outro tano, é como diz: tanto faz mais um como mais outro nóis tem costume de rezar. Mas sempre assim: dois par, é um homem uma mulher e um homem e uma mulher.

Memórias de velhos

Eu só sei cantar a ladainha em latim, que é aquela qui a gente diz: “Kyri’eleison, Christ’eleison, Kyri’eleison, Christ’audinóis”, que lá no português significa “Senhor, tende piedade de nóis, Jesus Cristo tende piedade de nóis” e assim continua. Tinha uma pessoa que sabia, mas eu num aprendi a música de cantar ela não. E mermo essa em latim, tem pessoas que canta ela ni duas música. Niuma naquela que eu sempre gosto de cantar, e tem outra também, outra música. Mas essa outra música eu num sei cantar não. Só sei cantar naquela música velha, tradicionário, daquele tempo dos mais véi da gente, né? Aprendí a cantá juntano mais eles. Aprendi a cantá e continuo cantano aquela música. Agora nessas outras músicas de entusiasmo que os novo aprenderam eu num sei, não.

Apois eu num sei, a gente esquece as coisa, mas esse Manual da Paróquia sempre ele tem as leituras, conforme eu falei. Cada festa tem um evangelho indicado, dedicado naquele assunto. No reisado... parece que se não for engano, na preparação da Lapinha do Menino Deus, parece que tem uma novena que a gente começa nove dias antes do Natal e encerra na véspera, no dia 24, aí no dia 25 é o Natal. Nesse manual, parece que ele... eu já vivo muito esquecido das coisa, mas eu tô sempre na lembrança que em preparação do Natal tem essa novena e nele tem o exercício da novena.

Que a gente não dá conta de gravar as coisas tudo. Mas isso que o senhor colocou é verdade: cada um movimento desse que a gente faz, ele tem um exercício diferente. Mas tudo dentro da realidade da doutrina Cristã, só diferencia o assunto. Às vezes tem Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Abadia, Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Cada um desses movimento tem uma diferença, né? A liturgia é diferente, mas relatando a mesma coisa.

Convidados especiais nas manifestações

O povo convida a gente, sempre procura. Aqui tem vários lugar, que sempre naquele dia, eles já fica esperando que a gente vai.

A folia de Reinaldo

Desde o tempo que era a véia, que foi a zeladora dele, porque justamente a mãe dele, no parto que ela ganhou ele, já ela viajou. Aí uma irmã dela foi quem zelou dele. Ela começou esse movimento e depois ele tomou conta, e desde o princípio que eu era lá mais eles. A mãe Deus chamava Maria, e a gente intendia Maria de Gabriel. Hoje, ainda tem as irmã dela, Filú de Joãozin, que mora lá mesmo, vizin deles. Tudo são pessoas que ajuda naquele movimento, mas ele tomou de posse de exercer as despesas, coisa que necessita, pra poder funcionar aquele movimento. Mas a origem já vem dos antecessores dele. Agora, na região, tinha, toda a vida tinha. Ali no Bebedô, que acho que até hoje continua. Lá eu participei no tempo de menino, de pequeno. Depois que eu cresci mais, não passei lá mais eles. Mas sei que acho que o movimento continua. Inclusive lá era uma dona Rita, chamada Rita de Calixto. Era essa Rita de Calixto, que a gente conheceu, que deu origem essa festa de Nossa Senhora do Livramento. E daí pra cá, depois apareceu mais outras pessoas que começou a festejar Nossa Senhora do Livramento. Mas a primeira, do meu conhecimento, foi essa lá do Bebedô, Dona Rita de Calixto.


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