ENTREVISTA COM DONA CLEUZINHA (moradora da comunidade do Queima-Lençol - Fercal/DF) - PEDRO RIBEIRO
ENTREVISTA 1 – DONA CLEUZINHA
(moradora da comunidade do Queima-Lençol – Fercal/DF)
P - Idade e nome completo?
DC - Cleuzinha Onoroso de Jesus e tenho 38 anos.
P - Como é conhecida na comunidade? Como as pessoas te chamam aqui?
DC - Dona Cleuzinha, Cleo...
P - Onde nasceu e o que te motivou a vir morar na Fercal/DF?
DC - Alvorada do Norte – Goiás. O que me motivou a vir para cá foi porque eu perdi minha mãe muito cedo. Eu perdi minha mãe eu tinha 06 anos. Eu vim morar com minha tia, que foi essa quem criou. Ela já morava aqui e ela foi me pegar para cuidar. Ela me pegou para criar... Então, a gente morou em outros lugares de sobradinho, mas depois viemos para a Fercal. Fui primeiro para o polo de cinema, uma chácara que tinha lá... Ficamos um tempo lá e depois viemos para a Fercal, para o Queima-Lençol. E estamos aqui até hoje.
P - Mora na Fercal há quanto tempo?
DC - Eu cheguei aqui na fercal com 09 anos. Tem 29 anos que eu estou aqui no Queima-Lençol.
P - Gosta de morar na Fercal? Por que?
DC - Eu adoro morar aqui. Eu adoro morar na Fercal. Às vezes eu penso em sair daqui, mas depois eu penso: não. Deixar minha casa, deixar meu lugar... não sei! Eu posso até mudar um dia, mas minha casa vai ficar... a hora que eu quiser voltar... A minha infância toda foi aqui, me criei aqui e é um lugar muito bom! Um lugar tranquilo... eu conheço todo mundo, todo mundo conhece todo mundo. Entendeu? Meus filhos também foram criados aqui e nem eles querem ir embora daqui, porque às vezes eu falo que vamos nos mudar daqui aí eles já falam (principalmente Tauan): - Ah, mãe... eu não quero me mudar daqui não, porque aqui é um lugar muito bom, não quero ir para outro lugar! Todo mundo é de boa aqui.
P - Me conte uma memória boa desses 29 anos que você mora na Fercal.
DC - Olha, eu vou te falar! O que eu nunca esqueci era das festas que tinham aqui. Muito boas! Tinham umas festas aqui que eu não perdia uma. Festa tipo boate. Forró! Tudo! Nunca esqueci. Isso daí ficou na minha mente... hoje, quando eu ouço as músicas que passavam antigamente nas festas, eu lembro. Nossa... hoje nem tem mais! Por aqui não. Igual era? Não! Então isso daí é o que fica na minha mente.
P - Quais são os pontos positivos de viver na Fercal?
DC - Porque tipo... aqui é um lugar tranquilo, as pessoas são pessoas todas humildes.. Tem alguns que não, mas você releva! Por essa parte só isso: a tranquilidade e aqui todo mundo conhece todo mundo, né? Então tipo... você pode sair ali na rua, pode dormir com a porta aberta que vai ser sem problema. Todo mundo conhece todo mundo... então esse é o ponto que eu vejo que é bom de morar na Fercal.
P - Como você descreve as mulheres que moram na Fercal?
DC - Ah... de um modo geral, a maioria das mulheres aqui eu vejo que são umas guerreiras! Guerreiras orque morar na Fercal, principalmente mãe de família, ter que deslocar daqui para ter que ir trabalhar no plano, em Sobradinho, ter que deixar os seus filhos... então assim, eu considero que são mulheres guerreiras.
P - E como você descreve os homens que moram na Fercal?
DC - Os homens daqui também são guerreiros. Mas para os homens é mais fácil porque para eles tem as fábricas de cimento. A maioria deles trabalha na fábrica! Tem a CIPLAN... que a maioria dos homens daqui trabalham na CIPLAN. Tem algumas mulheres da comunidade que trabalham lá também, mas são poucas. As pessoas daqui são simpáticas e alegres... homens e mulheres.
P - Como é a relação entre os moradores da Fercal?
DC - É uma relação tranquila...Por que assim, eu moro aqui há muito tempo, então tipo assim, não tenho intriga com ninguém e pelo que eu vejo todo mundo se conhece, se ajuda...
P - O que falta na Fercal? E por que falta, na sua visão?
DC - O que falta na Fercal, no meu ponto de vista, é mais transporte, área de lazer, cultura... assim, a gente tem a escola, mas eu acho que precisava melhorar. Não tem escola de ensino médio de dia. O centro de saúde, também, eu não tenho o que reclamar... mas acho que precisava de melhorar mais um pouco. Deveria ter mais especialidade também para a gente não ter que deslocar para Sobradinho. Deveria ter bancos, conveniência, delegacia, fórum.. Porque a gente mora aqui, mas tudo o que a gente tem que resolver, resolve lá, em Sobradinho. Tudo tem que ir lá e o transporte é horrível!
P - A Fercal se tornou uma Região Administrativa em 2012. Como foi esse processo?Fui uma decisão do Governo do DF ou foi uma reivindicação da comunidade?
DC - Eu acredito que foi uma reivindicação da comunidade. A maior parte da Fercal é zona Rural... só do engenho velho para lá que é zona urbana... e aqui, por exemplo, não tem correio. As cartas não chegam aqui... tem que pedir para chegar em outro endereço e depois a gente busca. Aqui a gente não tem endereço... eles estão padronizando endereço agora e até lá no Engenho Velho, que é Zona Urbana, os endereços não são muito certos. A Fercal é muito grande e a maior parte da Fercal é Rural...
P - Mudou alguma coisa desde que a Fercal se tornou uma RA?
DC - Mudou, porque aqui não tinha lotérica, agora já tem. Foi a única coisa que veio, foi a lotérica mesmo... Fica mais o título de RA do que a estrutura mesmo.
P - Como é a educação aqui na Fercal? Escolas, estrutura etc.?
DC - Da educação da Fercal eu não tenho o que reclamar, da forma do ensino. Thalisson estudou aqui até o oitavo ano, depois que ele foi para Sobradinho, foi direto para o CED 02. Não tenho o que reclamar... O que eu tenho que reclamar é só da estrutura da escola do Queima-Lençol, que eu vejo que não é uma escola que tem uma estrutura boa, que deveria ter. Deveria ser melhor... a parte do ensino lá deveria ser melhor, da direção também. A outra eu não tenho o que reclamar, que é a escola classe.. só poderia ser maior para atender mais crianças e ter mais salas de aula. Uma das piores coisas é não ter escolas de ensino médio de dia. Tem umas 07 escolas classe. Ensino fundamental só tem duas.
P - Como é a saúde aqui na Fercal?
DC - A saúde é igual eu falei... precisa melhorar. Não é que tá completamente ruim, mas precisa melhorar. Sempre que precisei funcionou, eu fui atendida. Mas eu acho que deveria ser 24h o atendimento. Por que caso você precise de atendimento à noite você precisa ir para Sobradinho. E quanto mais longe mora, nas fezendas... aí piora tudo!
P - Como é o transporte aqui na Fercal?
DC - Transporte é que precisa mesmo, é muito precário... Tem poucos horários, ônibus horríveis... a maioria, pelo menos. Os da piracicabana são melhores! Desde quando eles começaram a atuar aqui na Fercal ficou um pouco melhor. Tem 7 anos que ela ta rodando. Antigamente o único ônibus para o Plano que tinha era um só e ele passava de manhã e voltava seis da tarde. Hoje para o plano tem cinco ônibus que saem daqui cedo, só de manhã... depois eles voltam de tarde. À tarde não tem ônibus para o plano. Se precisar ir em outro horário tem que ir para Sobradinho II e pegar ônibus para o plano.
P - O que você acha da infraestrutura da Fercal?
DC - É ruim... tem uma história da água que é uma bosta! Antes era água do poço... daí a CAESB veio e colocou um bando de coisa, hidrômetros e passou a cobrar... só que a água não melhorou, continuou salgada, muita gente não pagou porque ficou foi pior! Para você ter noção, tem tanto sal na água que os chuveiros ficam entupidos... sempre estragam! Queima e a gente tem que trocar! E pior... quando tínhamos o poço o máximo que pagamos foi 20 reais, que era a taxa da energia para ligar a bomba... depois que a CAESB terceirizou o valor aumentou muito e agora todo mundo tá com uma dívida imensa. E o pior é que tinha casa que estava fechada, que não tinha ninguém morando e a conta tava vindo 200,00/ 300,00 reais. Tem caso de gente que tá devendo 20 e tantos mil. Eles alegam que a água é de boa qualidade, mas não é! A água não é doce, é cheia de cloro e salgada! A gente tem que comprar água do mesmo jeito para beber... ninguém consegue beber uma água dessa salgada. A gente ofereceu copo com água para esse povo da CAESB e eles não quiseram beber!
P - O que é opressão para você?
DC - Opressão pra mim é injustiça.
P - E você acha que existe opressão aqui na Fercal?
DC - A gente tinha que ter o que a gente merece... água de boa qualidade, asfalto, luz, banco, ser tratado com respeito... a gente é abandonado, esquecido aqui.
P - Quais tipos de opressão você pode citar e que você acha que estão muito presentes aqui na comunidade?
DC - Na verdade, os oprimidos quem estão sendo somos nós, os moradores. A gente tá sendo oprimido. Aqui acontece de uns homens beberem e agredirem as mulheres também. Por conta da bebida! Aqui tem racismo, tem as diferenças... quem tem uma carro melhor, por exemplo, já esnoba. Tem gente que quer ser melhor do que os outros.
P - O que, na sua visão, pode combater essas opressões, fazer elas acabarem ou diminuírem?
DC - Eu acho que aqui para ajudar a acabar as pessoas deveriam ter mais informações. Tinha que ter alguma coisa para as pessoas explicarem, passarem as informações... cursos, teatro. Uma forma de conscientização para mostrar que às vezes não é da maneira como eles pensam, da maneira como eles acham que tem que ser. As pessoas aqui não possuem tanta informação e tanto acesso.
P - Eu sei que você, junto com outras pessoas, já fechou a pista principal que dá acesso a Fercal como mecanismo de reivindicação. Você pode descrever a vez que foi mais marcante para você?
DC - A gente já fechou várias vezes. Por motivo da água, por motivo de transporte, por motivo dos ônibus escolares, para ver se chamávamos a atenção do governo para termos mais benefícios, para mostrar que aqui também existe ser humano. Precisamos ser enxergados! Eu lembro que da última vez que fechou foi por conta de 5 mães que foram fechar... foi porque as crianças estavam andando no ônibus escolar sem cinto de segurança. E até aconteceu um acidente na volta do Boa Vista, minha sobrinha até estava no ônibus. Daí a gente resolveu fechar! Aí depois que a gente fez isso, no outro dia já estava tudo resolvido.
P - O que você pensa sobre a presença das fábricas aqui na Fercal?
DC - Eu acho que a CIPLAN antigamente não fazia muita coisa, mas agora ela tá fazendo mais parte da comunidade. Mas ainda assim eu acho que deveria fazer mais! Como pode ser uma fábrica rica (porque uma fábrica é rica!) e não ajudar, né? Eles deveriam nos ajudar mais! Porque eles não fizeram até agora mais do que a obrigação deles! A nossa escola e o centro de saúde eram muito próximos da fábrica e eles desativaram os dois de lá e colocaram em outro lugar, no Loberal. Mas a estrutura foi muito péssima! No ano passado mesmo teve uma chuva muito forte e levou o telhado de um pavilhão da escola todinho. As crianças tiveram que ficar sem aula, estragou muita coisa! Acho que ficaram uma semana sem aula... não tinha como ter aula porque tinha molhado as instalações. As fábricas prejudicam o meio ambiente aqui sim, mas antes já prejudicou mais. A CIPLAN mesmo não tinha filtro... ela soltava aquele pó. Então ali prejudicava demais a gente. Agora como já foi multada várias vezes eles aprenderam... colocaram filtro, então não tem mais aquela poluição como tinha antes, mas ainda precisa mudar muita coisa. Melhorar muita coisa. Hoje não suja tanto, mas antigamente sabe o que eles faziam? Durante o dia ficava limpinho, mas quando era lá para meia noite, quando a gente dormia, eles soltavam o pó. Quando a gente levantava você podia ver, abrir a porta de casa e sair... você olhava e via tudo branco, de pó. Tudo branco de pó! Você lavava a área e no outro dia você levantava e estava só o pó de cimento branco. Hoje em dia isso não acontece mais porque botaram o filtro.
P - Como é o movimento cultural aqui na Fercal?
DC - Não tem nada de cultura aqui. Precisa muito, mas não tem. De vez em nunca aparece uma oficina... nem sei se tem mais, já teve há muito tempo. De esporte até que tem mais. De música e teatro nunca teve...
P - Como tem sido a relação da comunidade com a pandemia (COVID - 19)? Como foram esses últimos meses de pandemia aqui?
DC - A gente ficou um tempão sem sair de casa. Estava tudo contaminado e a gente em casa. Aqui na Fercal foi o último lugar onde o vírus chegou. E quando chegou graças a Deus nem atingiu tanto igual atingiu os outros lugares. Que a gente sabe a óbito só teve um homem, o Manuelzinho... Mas ele pegou no hospital. Distribuíram algumas máscaras, o posto até faz exame. E as firmas que prestam serviço para a Fercal colaboraram muito. As fábricas, por exemplo, passaram vídeos para os empregados e eles repassaram para a comunidade. No ônibus sempre tem um banner grande falando sobre isso. Foi avisado! Ficamos sabendo. As informações chegaram.
P - Se você tivesse que descrever a Fercal em 3 palavras, quais seriam essas palavras?
DC - Bom, morar e tranquilidade.
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