Entrevista com Manuela Castelo Branco - Realizada por Ana Vaz

 Entrevista com Manuela Castelo Branco, no dia 17 de outubro às 18 horas, no formato webconferência, pela plataforma Teams. 


Pesquisadora: Ana Vaz

Entrevistada: Manuela Castelo Branco


A entrevista foi iniciada com uma conversa onde a pesquisadora falava da sua experiência de leitura da dissertação da entrevistada. 


Ana: Uma coisa que eu queria te falar, depois da leitura da sua pesquisa, além de algumas questões com as quais eu me identifico muito enquanto palhaça, é que eu me lembrei do seu trabalho no início que era uma espécie de criança palhaça que você fez lá na UnB…

Manuela: É o "Identidades" que foi a minha graduação em Artes Cênicas, na Licenciatura.

Ana: Foi o seu projeto de diplomação? Que maravilhoso!

Manuela: Foi lá na Concha Acústica da UnB, não era?

Ana: É, você subia na árvore...    

Manuela: Falava sobre a morte. Por isso que eu falei que esse espetáculo era muito pandêmico. 

Ana: Maravilhoso! Então teve esse processo de lembrar mesmo né? De memória. Pensei assim, que massa! Eu acompanhei um pouco desse início dela e nem me lembrava… A gente se encontrou aí depois que eu voltei pra Brasília, eu fiz aquele trabalho na circa, que foi uma super oportunidade porque eu estava começando essa investigação com o curso do Avner e não sabia fazer com o que eu tava começando. Aí depois você me deu a oportunidade de participar de um dos Encontros de Palhaças…

Manuela: Espaços de experiência, nós estamos aí, é uma das funções da circa né? 

Ana: Sim, e outra coisa que eu me lembrei também nesse processo que pra mim foi muito bacana. Você se lembra se o Carlos Fernirah fez aquela oficina com você? 

Manuela: Em 2008…

Ana: Não, em 2002…

Manuela: Meu Deus do céu! Olha é muita memória, são 18 anos! Eu acho que ele fez sim, ele, a Ana Luíza, o Juliano…

Ana: Por quê eu tô te perguntando isso? Porque naquela época eu sempre perdia muitas oficinas por não ser de Brasília e não consegui participar do seu curso. Teve a sua oficina que foi feita depois do curso do Lume né? Daí o Carlos me deu um mini-curso de dois dias baseado nessa sua oficina. Ou seja, essa que foi minha primeira experiência em palhaçaria…

Manuela: Poxa, que testemunho! Eu só dei dois cursos de palhaçaria na vida. Esse… e depois em 2008 ou 2010, já mais voltado pra palhaçaria feminina. Mas era muita responsabilidade aí, eu senti que era muito e que tinha o depois e que o depois para mim tinha um peso muito grande com qual eu não sabia lidar, porque esse negócio de tirar o nariz e deixar a pessoa viver, aquilo para mim me gerava uma angústia tão grande que não sabia como lidar com isso. Aí eu falei, esse negócio de dar curso não é pra mim não. Assim né? Eu pensei, eu vou fazer outras coisas pelo coletivo, sabe? Me concentrei no festival, me concentrei em outro tipo de expansão da minha… sei lá, do meu risoma, hahaha…

Ana: Que é muito do que eu vivo hoje, porque eu tenho dado aula de palhaçaria desde 2015 e é sempre um conflito. 

Manuela: Teve uma outra vez que eu dei aula naquela escola lá do Paulo Freire, e foi uma vez que eu dei aula pro Pedro Lopes que tá com a gente na Pós… um grupo de adolescentes…

Ana: Legal! Pois é! Eu queria te falar sobre isso porque eu acabei de ter contato com a sua dissertação e pra ver como a vida é louca, porque dando aula de palhaçaria por tantos anos, eu ainda não tinha trazido a questão da palhaçaria feminina pras aulas. E a gente tá construindo tudo muito do zero ainda por não ter muitas referências, e ao mesmo tempo você como palhaça, deu uma iniciada em vários palhaços e apesar de eu nunca ter feito cursos com palhaças, você foi uma grande provocadora, que é uma mulher.

Manuela: Eu fico muito feliz de ouvir isso, mas eu tenho certeza de que, nessa minha caminhada, eu sempre pensei em como atingir mais pessoas sabe? E você contando essas histórias todas, e me lembro dessa questão de fé, de acreditar, acho que fazer as invasões era uma maneira de colaborar com muitas que estavam começando…

Ana: Exatamente.

Manuela: Eu enquanto realizadora, eu sempre fiz isso. Assim, sem querer me gabar… É consciente, porque eu acho importante. Que bom que você foi atingida por essa minha loucurinha lá de trás, que sei lá! De repente é sempre dando que a gente recebe né? 

Ana: Bom! Eu vou começar a abrir mais espaço pra você falar. Eu queria dar essa iniciada porque a sua dissertação me afetou muito! Me afeta muito enquanto palhaça essas questões todas que você coloca lá na sua dissertação. Eu fiz as suas questões ao mesmo tempo em que fui lendo a sua dissertação, então eu percebo que já tem muitas respostas lá muito interessantes que com certeza vão me ajudar muito. Então eu fui tentando lapidar essas questões pra que você pudesse trazer mais coisas, mas como você mesma diz "Estamos em obras", então tem muito água pra rolar debaixo da ponte. Então que tal agora você me falar um pouco sobre o seu processo de entrada no universo da palhaçaria, o que te motivou a iniciar e a seguir esse caminho?    

Manuela: Como você sabe, porque você leu a dissertação, eu comecei em 98 com o curso do Lume aqui em Brasília. Eu já fazia Artes Cênicas e com a minha irmã Felícia, tinha coisas que a gente queria fazer juntas de alguma maneira. Ela já estava no Esquadrão, já fazia alguns anos e eu acompanhei de perto esse processo, carreguei muitas bandeiras com ela e eu até tentei fazer Esquadrão também, mas acho que eu já era palhaça, não me lembro. Mas eu já via a minha irmã dando cambalhota, já via a minha irmã fazendo essas coisas e eu queria fazer junto com ela e eu me lembro antes de fazer essa oficina, que a Felícia tinha feito uma oficina de perna de pau, e a gente queria andar de perna de pau. A gente morava na colina, então a gente ia da colina até as Artes Cênicas andando de perna de pau pra aprender na rua sabe? E o quanto aquela experiência foi fundadora pra mim. Tanto que nessa oficina do Lume tinha que escrever uma carta e a gente não foi aprovada. Mas a gente queria muito. Então não era uma coisa só minha, era eu e a minha irmã. A gente queria muito ser palhaço de verdade. Aquilo que a gente fazia de andar de perna de pau, a gente fazia oficina de circo também, de malabarismo, de acrobacia... lá no Setor Leste. Eu fiz aula véi! (Risos) Já que eu não entrava no Esquadrão, eu tratava de fazer um negócio legal junto com a minha irmã. (risos) E no dia lá da oficina, eu falei pra Felícia, "a gente não conseguiu", mas vamo minha irmã, daí a gente foi e ficou lá fazendo cara de cachorrinho, "a gente é irmã, deixa a gente entrar, a gente quer muito entrar...", e a gente começou. Porque tinha essa coisa da sijogância de antes, mas ali deu uma aprofundada assim, que a rua me daria, mas o percurso seria outro, né? Eu seria outra e tudo seria diferente. Então… aquilo lá pra mim foi um aprofundamento. E naquele momento assim, a Ana Colla não estava presente nessa parte da palhaçaria. Tava mais por conta dos dois, o Simione e o Rick, né? Tava mais por conta dos dois e era acho que, a segunda oficina que eles deram. E eles aceitaram mulheres. Eu, a minha irmã... deixa eu ver quais outras mulheres tinham lá… é uma pergunta que eu nunca me fiz, por exemplo! Não me lembro mais quem tava de mulher. Mas ali não tinha essa coisa assim da mulher palhaça. É muito louco porque essa coisa da proibição de ser mulher palhaça, ela é inconsciente, é imagética, tem a ver com uma estrutura social, um imaginário social, tem a ver com outras coisas assim… das minhas tentativas assim, né? (risos) E também ser palhaço ali não era assim uma coisa assim como é hoje, tão glamuroso assim… o raio palhacístico tava começando a passar pelo mundo agora. Mas eu não sentia muito, eu acho que tinha a questão da técnica deles, essa questão de gênero não estava em primeiro plano. Não posso dizer que era desimportante, mas ela não era o foco, ela não tinha tudo isso que hoje tem, sabe? Não tinha nada disso. Então é muito louco, quando a gente fala da história da palhaça. É muito louco pensar nisso. Acho que a minha dissertação tenta falar um pouco isso, a história da palhaça, a história das máscaras cômicas né? E ali quando eu comecei foi isso, ali pra mim foi muito importante. Então, você me deu a colinha aqui. O que me motivou né? O que me motivou foi estar com a minha irmã, foi estar contribuindo com a graça, você descobre que fazer as pessoas rirem é muito maravilhoso, sabe? Ai será que eu saí?

Ana: Eu estou te vendo você sim.

Manuela: Ah é porque eu desliguei meu Zap, que tava fazendo "pinpin..." Então a minha motivação era essa. Eu queria fazer aquilo junto com a minha irmã e ver o tanto que a potência de fazer rir era bom, num sei! E eu também sou uma pessoa que você não pode falar "não pode" pra mim. (Risos) É uma coisa que me mobiliza nas minhas moléculas. E eu vejo a minha vida e a minha vida sempre foi o caminho do "não pode" pra mulher. Eu sempre fui iluminadora, eu tirei minha carteira de caminhoneira, eu queria dirigir meu caminhão, então quando fala "não pode ser palhaça", eu digo "O quê?". Não era que diziam que você não pode ser palhaça! É que no começo você não entende porque você não consegue trabalho. Eu não entendia porque não conseguia trabalho. Eu era boa! (Risos) Aí você começa a sentir toda essa questão estrutural assim. E essas condições sociais do mundo que foram me trazendo uma outra consciência assim né? Que uma parte da minha dificuldade tinha a ver com o fato de eu ser lida como uma mulher. Embora eu não fosse uma mulher dentro de um imaginário padrão do que é ser mulher né? É sempre um espaço de muito conflito. 

Ana: E você tinha consciência dessa mulher que não era um padrão? 

Manuela: Sempre tive! Porque desde pequenininha eu sabia que eu era diferente das minhas amigas. Quando a gente ia brincar de boneca, eu nunca brinquei muito de boneca. Eu não brincava muito de boneca. Assim, das minhas memórias infantis eu não brincava muito de boneca. Mas eu me lembro de criar Barbie. E de ser obrigada a brincar de Barbie. E eu me lembro de ganhar junto com a Barbie, o Ken. E eu me lembro de gostar e de me divertir muito mais quando eu fazia o Ken. Então nos meus "mónologos coletivos infantis" eu queria fazer o Ken. Vou revelar coisas muito íntimas, não sei se deveria fazer isso, mas eu ensaiei muitas vezes ser o cara, na minha vida amorosa. Assim na frente do espelho, de fingir de beijar a mão? Ensaiando ali… Então todas essas questões… são muito íntimas essas coisas que eu estou falando. Sabe, eu me lembro de desde a infância, não ser a menininha do vestidinho, embora a minha mãe sempre fizesse isso, botasse a gente de vestidinho, de maria xiquinha, eu sempre me reconheci como uma menina mais, eu vou usar essa palavra, selvagem no sentido da selvageria, não no sentido daquele livro maravilhoso da Pinkola, selvagem no que tem de selvageria, sem ser exatamente uma loba, ou uma lobinha. 

Ana: Eu vou te fazer mais uma pergunta dentro dessa pergunta, porque em algum momento você falou assim, "a gente queria muito ser palhaço"... agora não tenho certeza se você falou "palhaço" ou "palhaça"...

Manuela: Posso ter falado "palhaço", porque eu acho que faz parte dessa curva histórica. Na época, a gente queria ser palhaço porque nem tinha esse nome, o curso era de clown

Ana: Aí me veio a pergunta, qual era a referência? Você se lembra?

Manuela: A gente tinha, evidentemente, o Esquadrão da Vida, que em Brasília era uma referência… mas a gente como criança, tinha o Carequinha que a gente via na TV, nosso pai comprava o disquinho e tocava pra gente… eu não me lembro na infância de ir no circo, mas tinha Os Trapalhões né? O cinema. E isso é uma coisa muito interessante porque todas as nossas ações dentro do Festival foram ações que foram pensadas a partir dessa qualidade de reflexão né? Então a gente ali, no festival, fazia mostras de cinema de mulher independente de ser palhaça. Porque a gente achava que ali tinham algumas referências no cinema de dramaturgia que nos interessava, ou na pesquisa de uma dramaturgia… essa palavra é terrível… feminina… eu queria que ela me libertasse.

(risos)

Ana: Ótimo! Então eu entro nessa nova questão que você toca um pouco na sua dissertação também, que é: como foi pra você essa tomada de consciência do "ser uma mulher palhaça", uma palhaça mulher? Que entra nessa questão do feminino que você acabou de falar também. E quais as transformações que você sente que a Matusquela vivenciou a partir de então? 

Manuela: Na introdução da minha dissertação, eu fui muito feliz ali. Porque eu conto mais ou menos tudo isso um pouco né? Dessa aventura de se descobrir uma mulher palhaça. E também tem isso de se autoproclamar né? O tanto que se autoproclamar uma mulher palhaça é poderoso, é importante, tanto que isso foi importante pra mim, mesmo me duvidando algumas vezes mulher (risos), no sentido de que hoje, às vezes, eu me sinto muito mais travesti, um tipo de travesti do que uma mulher, mas enfim né? Isso são contaminações que a vida acadêmica, as leituras que você vai fazendo, vão trazendo esse tipo de reflexão. Mas eu me vejo como mulher e comecei a me ver como mulher palhaça a partir da minha relação com outras mulheres, sobretudo. Não foi na relação com os homens que eu me vi mulher palhaça, assim no sentido de me ver com essa qualidade. É como eu falei pra você mais cedo na nossa entrevista, eu não entendia porque a gente não era contratada, eu não entendia porque a gente não participava dos festivais. Eu não entendia muito bem isso. Eu não conseguia visualizar com a clareza que eu vejo hoje o sexismo nas relações de trabalho né? Isso tudo foram questões que foram se esclarecendo. E eu tive essa luz essa sorte de promover um festival que mudou a minha vida e mudou a vida de muitas mulheres e de homens também. De meninas né? De meninos…

Ana: Não foi sorte né? Foi uma grande batalha!

Manuela: Obrigada! É uma batalha! (risos) Eu dediquei a minha vida, cara! Eu dediquei a minha vida pra isso assim. Então é muito louco esse momento que eu tô vivendo aqui de tantos questionamentos né? Mas eu acertei muito quando eu fiz isso. Quando eu tive coragem de colocar isso à campo e de falar sobre todas essas questões que eu tinha na época né? Dessa dificuldade toda. E a aí você vai aprofundando né? Pra uma questão de falar, peraí… muitas dessas questões acontecem porque eu sou mulher. Essa consciência "Puxa! Não precisava ser assim!". Então eu acho que essa foi uma primeira consciência. E uma segunda consciência que me veio foi, tudo bem, o que eu posso fazer desde aqui? Opa! Talvez haja algo que eu possa recuperar lá atrás. Talvez essa história que me contaram esteja mal contada. Eu acho que é um pouco do que a dissertação trás. Hoje eu vejo essa historinha e penso que a própria história que eu contei, ainda faltam pedaços que são muito importantes pra mim agora e que eu preciso voltar lá, mas que mesmo na minha dissertação eu já trago. Essa inquietação, em relação à questão de gênero, aí você pode realmente pensar em sobrepor essas camadas de gênero em relação à comicidade, ou em relação à palhaçaria sabe? Essas camadas de gênero em todas as manifestações identitárias. Que sempre existiram, sempre existirão, mas que sempre foram invisibilizadas. A gente tem o protagonismo dos homens na história, isso é, infelizmente inegável para todos nós né? Então se ver uma mulher palhaça foi um marco político. Tem essa dimensão pessoal, super pessoal, de querer ter a oportunidade também de fazer as coisas, de ter trabalho, de criar, de ver o seu trabalho sendo reconhecido. Tem toda essa questão assim, mas também tem questões que vão simplificando cada vez mais né? Quando eu me proclamei assim "mulher palhaça", foi dentro desse bololô que eu vivi, que eu acho que é uma palavra que me interessa muito, que eu vivi com outras mulheres que se colocavam também como palhaças. A maioria delas mulheres com buceta, né? Então uma parte que às vezes eu me recinto é de que na nossa política, a utilização dessas coisas do feminino, do peito, da buceta, de toda uma representação de performance de mulher, foi um chão que a gente criou né? Mas é um chão que… como eu falei né? Eu queria que quando eu usasse essa palavra "mulher" isso me libertasse, então libertou muito, abriu muitos caminhos, mas acho que ainda tem muito o que fazer. Acho que mais pro fim da minha dissertação isso vai ficando mais claro, que é o meu ponto aqui agora. Aquele momento histórico, foi essencial, esse movimento da palhaçaria feminina. Ele foi essencial para que toda uma história de opressão imaginária, artística, profissional, criativa, que é muito séria né? Opressão criativa, ela é matar a gente por dentro. É muito ruim né? Então foi um momento histórico onde a gente explodiu, no sentido de que estamos aqui. Nós existimos e somos muitas! Então acho que tem essa importância de se declarar mulher palhaça. E assim eu falei um pouco dessas transformações que a Matusquela vivenciou né? Foram muitas transformações. Está vivenciando. De uma maneira muito poética me permito dizer que a Matusquela resgatou em mim a minha criança, essa menina, que eu meio que não fui muito. No meu imaginário de menina. Então a Matusquela me resgatou essa menina pra resgatar uma mulher. Então eu tive esse momento em que a Matusquela me resgatou todo um universo feminino, mesmo! Pra minha pessoa. (Risos) Eu não uso saia já vai fazer bem uns 10 anos, que eu não compro saia… tem uns dois ou três que eu doei. Se você procurar aqui na minha casa tem talvez uma que eu guardei porque eu ganhei de uma pessoa que eu amo muito e que eu não consegui me desfazer por questões emocionais, mas tem as roupas da Matusquela. Que são as minhas roupas da minha menina que ela resgatou e da minha mulher também  que ela foi resgatando né? Então tem esse momento também. E é interessante quando você fala desse trabalho do "Identidades", porque ali eu já tava nessa questão das identidades culturais da palhaçaria, eu já tava querendo me disfarçar de alguma coisa pra me encontrar, pra fugir da morte. Hoje esse texto volta na minha vida com uma recorrência bastante interessante sabe? Pena que eu fui assaltada e perdi esses arquivos todos e eu não sei o que restou da minha cachola aqui. Mas a Matusquela viveu todo esse resgate, do meu rosa, de me aceitar nesse lugar… por mais que mesmo quando eu esteja de palhaça, toda rosa, toda binitinha de baton… baton também é uma coisa que eu uso quando eu tenho que pedir dinheiro de produtora… às vezes eu tenho que botar aquele baton e eu me sinto tão ridícula. Mas às vezes eu ponho entendeu? Eu acho importante uma roupa branca assim, cheirosa, mas essas coisas assim, baton, maquiagem, vestido… são coisas de uma recuperação pra mim, que é uma recuperação feliz, mas é uma recuparação de luta, que eu me envolvi com o movimento feminista profundamente né? Pra conseguir fazer tudo isso que a gente realizou né? Pra conseguir existir, sobreviver. No texto também tem isso né? Algumas formas de reunião femininas, várias mulheres palhaças, a gente transforma o grupo, mas mais do que o grupo, a gente transforma os arredores do grupo. Então deixa eu voltar aqui né? Essa questão das transformações né? Naquela época tinha essa coisa de falar pouco, muita respiração (simula a resiração), mais próximo daquele curso dos princípios do Lume sabe? Teve uma época, que eu pintei meu cabelo de branco pra que a Matusquela pudesse ter uma cara de vovó. Pra que eu pudesse dar uma envelhecida nessa criança, né? Porque os anos se passavam e a Matusquela continuava como se fosse um Erê sabe? E eu sentia falta de trazer essa mulher pra ela. Não só criança. Porque tem essa ênfase da criança interior né? Mas de repente num certo momento a vazão de uma mulher que fosse lésbica era uma coisa conflituosa pra mim naquela época. Eu me lembro de… na dissertação eu falo isso também… tantas vezes que eu enquanto Matusquela me sentia obrigada a beijar e a abraçar homens e a paquerar homens porque eu era mulher. Embora essa mulher… a Caísa me fala muito isso… que toda vez que ela me via de Matusquela, mesmo vestida de rosa, mas por causa das tatuagens… de uma coisa que emana de mim… as pessoas vinham me perguntar "Mas você é um homem que tá fazendo uma palhaça né?". As crianças vem me perguntar. Elas querem ver se o meu peito é de verdade, o que tem debaixo da minha saia. Eu falava "mas vocês não estão vendo aqui no meu decote que o meu peito é verdadeiro?", "não, mas não é!". Então essa ambiguidade, é uma coisa que me perseguiu desde a infância. Eu já chorei por causa disso muitas vezes. Nessa coisa de querer ser menina, de querer ser mulher, eu já chorei quando a criança vinha e falava assim "mas você não é palhaça, você é palhaço, você é um homem", e na hora da festinha eu me segurava mas em casa eu chorava. E aos poucos eu fui aprendendo a colocar isso num lugar adequado assim, que é um lugar de crescimento, de entendimento, não de negação e de choro. Olha só, tô quase heim? Quase marejou. Então eu e Matusquela estamos vivendo essa transformação né? Eu fiz um compromisso pessoal comigo de que no meu show de mágica se acontecesse eu ia beijar meninas, mulheres. E tenho começado a beijar. A primeira vez que isso aconteceu foi também um dia que eu chorei muito. Foi um dia que eu consegui colocar a minha verdade ali, entendeu? Porque por mais que a gente revele, que a máscara seja um desmascaramento, que é algo que eu coloco muita coisa ali, a gente no fim quer sempre ser amado, ser adorado pelo público, a gente quer sentir tudo isso assim. Então a gente faz encenações pra gente mesmo né? Brincando de palhaço. Não sei o quão profundo que isso é. Mas essas coisas foram ganhando cada vez mais consciência e o mais importante que é uma pergunta que eu me faço tem alguns anos, o tanto que a minha atuação artística está envolvida com um: o artivismo. O tanto que eu consigo envolver a minha atuação artística, e não a minha atuação enquanto produtora, enquanto realizadora, mas a minha realização enquanto artista. O quanto eu consigo dialogar com movimentos sociais, né? A outra pergunta que me faço muito, é o tanto que eu tô conseguindo de fato, revelar na minha produção artística, quem eu sou. De maneira consciente, de maneira provocada, não de maneira imanente. Sabe? Como A Ana Luiza, algumas vezes nas nossas conversas, eu falava "você é uma palhaça negra", e ela falava "eu sei que eu sou negra mas eu não preciso falar sobre isso porque eu já sou". Sabe? Então essa coisa assim de "eu não preciso falar que eu sou lésbica, porque eu já sou". Mas aí eu fiz esse pacto com a Matusquela, dela beijar mulheres também, dela ter coragem de de beijar mulheres também. E ela tá gostando. E quando eu mando ela falar assim… porque a gente quer mandar na nossa criatura… porque é uma criação autopoética, como eu falo aí, né? Tem muita criação. Nem tudo que está, está ali de fato, mas está porque é numa criação. 

Ana: A gente quer ser verdadeiro né? 

Manuela: Quer ser verdadeiro. Tem esse compromisso de autenticidade, de veracidade. A nossa palhaçaria tem esse compromisso assim, né? Esses pontos metodológicos que pra mim na época do Lume alguns eram claros e outros não. Depois com a Sue Morrison, as coisas vão mudando né? Tudo vai mudando… com a Felícia de Castro… com as aproximações e com as contaminações que a gente vai vivendo mesmo e vai transformando o nosso organismo né? Tamo vivendo aqui mais uma transformação eu e Matusquela. Então voltando aqui… são muitos pensamentos... então eu falo assim "Então Matusquela agora você não beija mais nenhum cara, porque agora você é uma palhaça sapatona, entendeu? E agora você vai esculachar, tá combinado?". Aí chega lá na hora, a Matusquela quer beijar homem, quer beijar mulher… (Risos) Isso é ótimo pra mim. Porque me dá garantia de que o que eu tô fazendo vem de um lugar de dentro que de repente, o meu cabeção não consegue acessar, mas que o meu corpo fala, que o meu coração fala. A minha palhaçaria tá sempre repleta disso, desse desvelo. Sempre dialogou com isso. E isso é muito difícil né? Essa comunicação da gente com a gente.

Ana: Acho muito legal essa última fala sua, que é essa ideia de que você saiu de uma caixa e foi pra outra, saiu de um rótulo e foi pra outro. E é interessante porque talvez você estivesse tentando enquadrar a Matusquela e ela falou "peraí, ok, tem isso, mas também tem aquilo e tal", o que fala sobre a própria liberdade poética dessa palhaça que tem uma vida própria. Mesmo que não seja uma entidade mas ela está ali buscando uma liberdade né? 

Manuela: É uma epopéia! (risos) É uma epopéia autopoética, sem dúvida! Pra mim foi um desafio encontrar esse lugar e conseguir me revelar na escrita de uma maneira que me fizesse feliz. E isso me faz feliz justamente porque muitas vezes eu me sinto hoje me traindo a mim mesma, no sentido de ter politicamente, esteticamente, artisticamente, defendido um lugar disso que a gente chamou de "palhaçaria feminina" e de alguma maneira eu sou uma das pessoas que quer implodir isso, embora eu entenda a importância política e histórica que isso tem. E nem todo mundo passa por essa crise que eu passo (risos), na minha mulher, ou na minha existência, né?

Ana: Eu acho essa fala maravilhosa! Fala um pouco sobre o que é esse implodir essa palhaçaria feminina? 

Manuela: Cara! E aí nessa dissertação eu vejo que muitas vezes eu fujo disso. E é muito louco eu ter começado pela ópera. Porque pela ópera me foi oportunizado não só falar sobre o drama histórico da mulher no sentido do assassinato em cena, mas me permite desde aí, falar sobre travestilidade, sabe? Me permite desde aí, falar de lugares onde essa performance de gênero teve combinações opa!!! Meio diferentes! Que se eu, de repente, fosse numa história da comicidade feminina do começo ao fim esse assunto não passaria. Mas como sou eu que tô falando… e isso não era uma coisa consciente. Mas depois de ter lido e agora vivendo o que eu vivo, eu vejo que já estava tudo lá. Então eu não preciso me sentir me traindo tanto, porque às vezes eu me sinto me traindo. E quando eu falei dessa implosão né? Quando eu estava estudando a gente já estava naquele esquema de falar palhaçaria feminina, mulher palhaça, esses termos todos estavam sendo criados ali, sendo gerados ali, é meio difícil fugir disso né? Mas eu também me lembro de procurar falar sobre uma palhaçaria mais sólida, uma palhaçaria mais líquida, tentar me relacionar com os estados das coisas, porque eu também me sentia aprisionada por falar dessa binaridade desde o começo sabe? Dessa oposição mulher e homem. Isso sempre me agoniou um pouco. E aí eu falava dessa explosão das palhaças né? A explosão não é muito palpável. Não é uma coisa que a gente pega. É o que eu sempre penso no Big Bang assim, Boom!! Era só uma coisinha e aí de repente fez Boom!! E aí de repente a minha sensação agora de implodir é porque eu tô dentro do movimento. Dizer desde dentro do movimento: "Migas! Quando a gente começou a falar disso, era pra gente se libertar não era?". Então essa é a minha pergunta pichada sabe? Não se comprometa com coisas que vão te aprisionar. Seja inteligente, Manu, com você mesma, sabe? (risos) Então tem essas filosofias, por isso que eu falei sobre isso de implodir. 

Ana: E o que você acha que caracteriza essa comicidade feita por mulheres palhaças? Antes da gente implodir ela. (risos)

Manuela: Quando eu converso com a Ermínia, que é uma grande historiadora do circo no Brasil, nós pensamos muito sobre esse percurso. E as vezes nós procuramos diferenças na palhaçaria feita por homens Cis, e a palhaçaria feita por mulheres Cis ou não, porque eu acho que tem essa proximidade, que quando a gente procura falar dessas diferenças, ou dessas peculiaridades, a gente corre o risco de falar que o outro lado não tem isso. Então esse caminho da diferença, ou da oposição, é um caminho que a gente tem que tomar muito cuidado ao falar. 

Ana: Talvez uma tentativa de igualar mas criando diferenças, né?

Manuela: É porque se eu digo assim, "a palhaçaria feita por palhaças é uma palhaçaria muito inventiva, de muitas combinações, porque como as palhaças não tiveram um lugar comum na história, da sua máscara… como a gente não se vê na tradição...", aí a gente vai dizer que a gente não existia, que a gente veio de outro lugar. Aí parece que os palhaços nunca fizeram isso. Que os palhaços não vieram do teatro, não vieram da rua, do hospital… Então é muito difícil falar dessas diferenças, ou dessas peculiaridades sem entrar nesse lugar. Então, desde já, eu quero dizer que as coisas que eu vou dizer vem de uma tentativa de não fazer isso, mesmo que eu não consiga (risos). Eu vejo que na palhaçaria feita por mulheres e na história da humanidade, sobretudo essa história eurocêntrica, cristã, essa história que está na maioria dos livros (risos)... nessa história, todas as vezes que a mulher entra no lugar, elas não mudam só o ambiente, mas elas mudam a coisa, por exemplo. Na revolução industrial, por exemplo, onde as mulheres já nas suas casas fabricavam a cerveja, as coisas casa, a botânica da saúde… na revolução industrial quando se precisava fazer isso para a multidão, a gente foi proibida de fazer isso, foi tida como bruxa, prostituta, queimava na fogueira, essas coisas né? E eu tô falando mais de uma mulher, mas eu imagino que uma pessoa gay, naquela época sofria das mesmas coisas. Uma transexual, por exemplo vivia toda essa repressão de uma indústria patriarcal, entendeu? Então acho que tem uma história que mostra que quando a mulher entra na indústria ela causa a revolução na hora. Então depois da revolução industrial, depois que mataram a gente pra gente não fazer as coisas, aí quando precisaram que a gente entrasse na indústria pra fazer as coisas… pra fazer os remédios, sei lá, pra lavar o chão, a gente chega lá e faz a revolução. Eu acho que a commedia dell'arte também fazia isso. Acontecia o teatro na rua… aconteciam os saltimbancos… mas a entrada da mulher em cena, fez com que as coisas se organizassem de uma maneira diferente. O quê de diferente? Difícil precisar! Mas metodologicamente aconteceu uma coisa ali, de uma organização dos roteiros, de uma coisa de não poder mais tanta coisa, afinal tinham mulheres presentes… sabe? Uma coisa que alterou aquilo e é difícil dizer. Então nós da palhaçaria, quando as mulheres entram com força na parada, eu sinto que a gente altera. Altera ali de alguma maneira um sistema de relações, porque eu vejo que as mulheres palhaças trabalham em rede, num sentido diferente dos homens palhaços e sinto que do ponto de vista da dramaturgia a história mudou. As historinhas mudaram um pouco, sabe? A dramaturgia implica numa mudança dramatúrgica da parada e com certeza metodológica, porque as palhaças falam… é difícil dizer isso sem soar que os palhaços não façam isso… de uma maneira mais emotiva. As emoções ocupam um espaço na cena, maior. Não que os palhaços não façam isso, mas eu que acho que de alguma maneira…

Ana: Isso ganha mais espaço, né? 

Manuela: Ganha mais radicalidade, ganha mais importância dentro da coisa. Eu acho que o discurso político ganha outro lugar. Porque a comicidade sempre teve esse lugar do discurso político, da crítica social, mas eu acho que a palhaçaria feminina trouxe outros motes políticos e até outra maneira de lidar com isso. E aí o movimento feminista nos ensinou muitas coisas. Nos ensina a como fazer uma revolução. Uma mini-revolução. De como ter estratégias de não aceitação de certas coisas como "você palhaça, aqui não mulher", "aqui a sua cena é ruim", "Por quê? Porque é ruim." Ainda tem essa pergunta né? Ainda vou muito a festivais de palhaças e palhaços, e é muito louco você pensar nesse dialogismo da plateia que é uma coisa que a mulher trouxe. Ela trouxe uma plateia diferente. Ou uma plateia que pode finalmente, reagir diferente. Então, as piadas… é muito louco ver isso né? Que tem piadas que a gente vai lá pra assistir, os caras riem e a gente não ri de nada. Ou o contrário, as vezes eles vão pros nossos espetáculos, a gente morre de rir e eles falam "O quê? Estão rindo disso?". Tem alguma coisa assim, que eu ainda não sei dizer que diferença a mulher e o homem tem. É muito mais do que, o cabelo no peito e queixo cabeludo e a mulher não tem. Porque eu tenho cabelo no peito e o queixo cabeludo, acima de tudo, além de tudo (risos). 

Ana: Legal! Como você associa o discurso cômico da palhaçaria feminina com o discurso da mulher contemporânea?

Manuela: Eu acho que a palhaçaria feminina, ou a palhaçaria feita por essas mulheres, a primeira coisa que ela faz é num nível simbólico de relaxar a pressão sobre os nossos corpos femininos frente a uma tradição cristã de santificação dos nossos corpos, corpas… no caso aí é só corpos femininos, porque corpas seria um corpo insurgente, né? Mas do corpo feminino. Então tem essa transgressão desse corpo feminino santificado, cristão, reprodutivo né? A gente também coloca o corpo da mulher pra fora da situação do desejo, né? Ou é nossa mãe, pra gente respeitar, nossa irmã, aquela mulher que a gente acha que não transa, que é santa, ou é o corpo da vizinha, certo? Que é aquela que você deseja, sabe? O corpo daquela mulher da rua. O corpo com o qual você quer transar. A comicidade feminina traz um outro lugar pra esse corpo. Traz um lugar de riso. Mulher rindo de mulher. Mas não de uma maneira pejorativa, mas rir com maravilhamento, com encantamento, rir porque é engraçado. Sabe esse lugar de graça? Eu acho que a palhaçaria feminina faz um bem social enorme. Relaxa essa tensão do desejo, da santificação, e a gente está lá pra rir. Isso é um ganho histórico. E olha que nessa pesquisa dessas máscaras cômicas femininas, esse lugar do desejo como cômico é um lugar que a gente meio que desassociou mas que ainda existe, na ideia do cabaré por exemplo, sabe? Não que não exista, mas ainda existem essas combinações. Eu não vejo muito o riso da santificação. A parte da santificação feminina ainda falta a gente rir disso, mas a questão do desejo a gente já conseguiu rir, a questão da maternidade a gente ri… na performance social da mulher a gente já está conseguindo rir de muitas coisas. A gente ainda não ri da violência. Por isso que a palhaçaria feminina tem essa pegada artivista. Quando você se assume mulher palhaça, traz essa questão artivista. Como se o riso não fosse o riso da graça, mas o riso da denúncia da mulher palhaça, da mulher palhaça negra, sabe? São vários risos que a gente começou a trazer. 

Ana: E até de quebrar paradigmas e de poder falar de coisas que a gente não falava antes, né? 

Manuela: É! Isso que eu falei, das dramaturgias que começam a aparecer né? E como isso é diverso! Por isso quando eu falo que a palhaçaria feminina tem uma diversidade que é assombrosa, eu não estou querendo dizer que a palhaçaria feita por homens não tenha, mas que nessa apropriação, nesse uso, nessa questão da metodologia, na tradição da palhaçaria, desse trem… na hora que a gente entrou nesse trem, o trem ganhou outras cores sim. Pela nossa presença, pela nossa ação. 

Ana: Maravilhoso! Eu acho que a pergunta que eu vou fazer agora, você já entrou um pouco nela, mas talvez se você quiser complementar, eu gostaria de saber o que você acha sobre qual é o papel do corpo na palhaçaria feminina e como esse corpo constrói diálogos entre o cômico e o feminino.  

Manuela: Eu acho que a gente tem que explorar muita coisa em relação a esse corpo cômico da mulher. Eu acho que a gente nem começou. Essa é uma exploração que a gente nem começou a fazer direito. Acho que a gente já foi direto pra dramaturgia e fomos lá ver a estrutura cênica na dramaturgia. Agora essa questão do corpo, tem o primeiro lugar que é o lugar de motriz né? Não tem como você fugir do seu corpo! E em toda aquela minha primeira fala sobre gênero e generidades insurgentes, esse lugar do corpo é um lugar do qual não temos como fugir. E mesmo eu que tentei fugir, não consegui, porque ele se manifesta toda hora e vem me perguntar "e aí?" (risos) "me dá passagem!". Eu acho que isso é o que o corpo faz. É aquela velha história, é mulher palhaço? É homem palhaço? É palhace? Essa questão do corpo como imanência de identidade, né? É comum a todos. É como eu te falei, lá no início a gente caiu numa coisa que eu sinto hoje que era absolutamente transfóbico sabe? Em muitas das nossas discussões, quando a gente vai trabalhar o corpo feminino e vai transpor isso pra suprir preconceitos a gente cai num equívoco terrível! E quantas vezes eu mesma já errei em relação a isso! Sabe? São momentos históricos onde os véus vão caindo. E toda vez que eu me vejo e já me vi caindo nisso eu fico um pouco envergonhada, mas eu tenho que ser benevolente comigo de entender que era uma coisa histórica que tinha outros elementos. Porque é uma mudança de paradigma muito grande. Então eu acho que o corpo da palhaça constrói diálogos, constrói discursos, inclusive aprisionamentos também, mas ele constrói também, discussões. Além de diálogos ele constrói embates. Muito louco ter isso em mente! E eu estou falando isso porque eu estou tentando pensar num lugar para além da binaridade, sabe? E sentir que de repente, posso estar recorrendo nos mesmos erros é uma loucura muito grande! De pensar nesses corpos sempre como insurgência. Ter a palhaçaria como um princípio de insurgência. Não perder isso de vista. E eu acho que o lugar que a gente não pensa porque "é", é o lugar do corpo. Esse é um caminho de muita pegação, hahaha… de muita verdade, né? 

Ana: Manu, estou muito feliz de estar fazendo essa entrevista contigo porque eu vejo que estou engatinhando na palhaçaria feminina, como te falei antes, eu dou aula de palhaçaria mas uso muito da minha experiência que vem majoritariamente da minha vivência com mestres palhaços. Apesar que, como conversamos, também tenho influência indireta de mestras palhaças… mas estou engatinhando e vejo que você se aprofundou tanto nesse tema que você já está indo além e pensando além, no que pode ser feito a partir de agora, e fazer com que esse momento histórico possa gerar bons frutos e não apenas mais caixinhas ou se estagnar. 

Manuela: A gente tem que ter em mente esse perigo né? Mesmo como você falou, que você é cisgênera hétera, né? O feminismo dá muito essa dimensão para nós todas. 

Ana: Exato! Que mulher é essa né? Que mulher palhaça é essa, né? Quais são as referências, quais são os questionamentos, quais são os problemas que a gente quer falar? São muitas variações… Então você tem mais alguma coisa que você gostaria de falar para complementar? Alguma coisa que talvez até tenha surgido dessas perguntas, dessas provocações? 

Manuela: Eu desejo que você faça um lindo passeio por todas esses lugares e que seja um lindo passeio mesmo de muitas descobertas, porque é esse o convite né? Quando a gente vai falar de uma obra de arte desse porte que está tão ligada a essa questão de identidade, é um percurso interno muito grande. Do que você falou, esse texto que você leu, ele conta a história de um caminhar, de uma passagem. De modo algum, mesmo eu estando nesse momento, querendo olhar pra tudo isso a partir de um outro ponto de vista, de maneira nenhuma esse ponto de vista da mulher palhaça, firme na palhaçaria feminina, está esgotado, sabe? Então eu quero te dar força nesse lugar, para você escrever o que ainda não foi escrito sobre isso, entendeu? A partir do seu olhar, das suas conversas… não se impressione com a minha fala histórica de que a palhaçaria feminina já deu o que tinha de dar. Não é isso que eu estou falando, não é nisso que eu acredito, mesmo! Eu acho que a palhaçaria feminina ainda tem muita coisa pra dar e muitas caixinhas para bagunçar. E vai, aprofunda, a gente quer saber sim. É como aquela negra que fala que todo corpo é político. Ainda tem muito o que dizer sobre esse corpo feminino sabe? Ainda tem muito o que pesquisar. A gente começou a desencavar essa ruína agora, sabe? E eu te desejo muitas descobertas. EU acho que tem que ir fundo, muito fundo. E eu quero saber das suas descobertas, do que você está pensando. Me coloco disponível para te ajudar, no sentido dos contatos, dos artigos… como a gente tem feito né? Eu acho essa troca muito importante e fico muito agradecida, me sinto muito reconhecida pela maneira como você tratou a minha história. Agradeço!

Ana: Manu, eu que agradeço! Estou muito feliz de ter pensado em fazer essa entrevista primeiro contigo, por ser uma figura tão próxima, já que estivemos na faculdade na mesma época, num momento em que estava todo mundo se descobrindo, descobrindo o que queria fazer e tal! E… eu não sinto que você está mudando meu percurso ou algo do tipo, na verdade, eu vejo isso como algo muito positivo justamente por você me trazer novas percepções e provocações, e por me lembrar que não é uma coisa ou outra, que o universo das palhaças é diverso completamente novo mesmo. Estou feliz inclusive de estarmos estudando juntas para poder ter essa troca. Muito obrigada pelas contribuições que serão muito importantes para a minha pesquisa!     





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