ENTREVISTA COM LUCIANA MEIRELES [ Entrevistada por Isadora Lima]
Execício II: Coleta de dados: Entrevista semi-estruturada
Isadora Lima Rodrigues
Currículo resumido da entrevistada: Luciana Meireles há 13 anos é agente cultural, educadora, griô aprendiz, contadora de histórias e brincante. Com formação vivencial em diferentes grupos culturais, mestres e mestras da cultura popular do Distrito Federal e Bahia. Co-criadora do coletivo Casa Moringa e colaboradora da Escola de Formação em Pedagogia Griô.
Data: 26/10 às 19hrs
via vídeo chamada por Meet app Google
Como você chegou à Maria das Alembranças?
Então é um caminho longo. Acho que tudo começou quando conheci a cultura popular como linguagem. Na minha ancestralidade e vivência, venho de família popular então de alguma forma sempre tive essas vivências. A família da minha mãe é do Goiás, é um povo muito contador de história e contador de causos. E tem essas coisas da comida, de sentar para comer junto e ficar contando causo, de ficar contando história. Minha vó é uma figuraça. Eu cresci com a minha avó, com a minha mãe, tenho elas como referência. Aí a gente tem essa história na família da bisavó da minha avó - minha tataravó - que desde que eu sou criança escuto essa história de que ela foi uma índia pega no aço. E aí eu não entendia o quê que isso significava e ficava no meu imaginário “caramba eu tenho uma tataravó índia”. E assim, na minha família eles são bem preconceituosos, aquele povo do interior sistemático, cheio de preconceitos. O pessoal falava “negócio de ser índio”, com essa perspectiva bem do senso comum “índio povo selvagem, vive lá no mato! Por que você quer saber dessa história?”, porque eu ficava perguntando “gente, mas como assim a tataravó é índia? Índia de onde? Como é que é isso?”. Ficava perguntando, curiosa, mas ninguém me dava muita bola. Mas é isso né, eu cresci em roça, visitando a roça que era da família, então muito dessa referência da natureza, de ter vivência no rio, de ter vivência com as árvores, com os bichos estavam ali. Só que na adolescência, por exemplo, eu me desliguei de tudo isso, porque na adolescência eu entrei naquela de querer ser a moderninha, aquela coisa da cultura urbana. Dentro da perspectiva da cidade a minha família era um bando de caipira. O olhar estereotipado e preconceituoso, um preconceito muito comum ao povo sertanejo do interior. Um povo que tem uma raiz, ancestralidade muito indígena, uma memória de uma forma de vida indígena. Falar que o jeito que o povo caipira fala errado é um grande preconceito, porque na verdade eles falam uma língua muito parecida ainda com Nheengatu, que era uma língua lá da época dos jesuítas dos colonizadores. E aí ficou heranças, esse sotaque nos goianos, paulistas e mineiros, coisa que depois eu fui descobrir, mas que na época de adolescente eu não ligava e também não queria ser. Era difícil para mim, tirava onda da minha família “esse povo da roça”. Quando tinha uns 17 anos, passei para o vestibular da UnB e fui buscar muito esse mundo acadêmico e intelectual nessa compreensão mesmo de que é pelo ensino superior que a gente vai ter mudanças de vida, mas aí ao mesmo tempo conheci o ponto de cultura lá em Taguatinga no Mercado Sul e o Centro de Invenção Brasileira, e tudo começou lá de certa forma porque foi lá onde eu vi a brincadeira. A 1ª brincadeira que eu vi foi de Mamulengo, eu pirei, porque o Mamulengo é aquele negócio “boneco dando nó em goteira”, uma pessoa só com os bonecos nas mãos arrebatando uma multidão. Eu falei “cara isso é muito legal” e ao mesmo tempo a minha mãe era professora de artes na educação infantil, então a gente sempre teve essas coisas em casa, boneco e brinquedo, então ao mesmo tempo era muito familiar. Comecei assim, eu cheguei pelas oficinas de Mamulengo, com o mestre Chico Simões, que eu fico falando que foi ele quem abriu a porteira. Ele é uma figura que vale muito a pena de conversar, porque ele tem um pensamento, é brincante filósofo. E aí com Chico foram muitas conversas, vivências, todo esse movimento de ponto de cultura. Eu invoquei de construir uma palhaça, então na verdade a primeira figura que eu brinquei era a palhaça Carona, que era inspirada nos palhaços de Reisado de folia que o Chico brincava com o palhaço Mateus da Lele Bicuda, só que eu já tinha essa inquietação de “cara eu sou uma mulher, não vou ficar imitando um homem”, então aí começou essa história de ser mulher, porque não tinha muitas mulheres que brincavam, tinha Seu Estrelo né... Eu assisti uma apresentação do Seu Estrelo e também fiquei arrebatada com os tambores e tal, então teve muito isso né, esse arrebatamento da brincadeira, da cultura popular pela música, pelos bonecos e pela palhaçaria. Foi aí que me joguei na pedagogia Griô, que eu acho que é uma referência legal para você, por que muito do entendimento que depois eu fui tendo inclusive desse assunto da ancestralidade vem desse estudo da pedagogia Griô. É uma pedagogia que foi criada aqui no Brasil, lá na Bahia, e que traz exatamente isso: a proposta de trazer a identidade e a ancestralidade do povo brasileiro para o centro da educação, dos processos educativos e dos processos criativos, não tem esse foco artístico, só que acaba se desdobrando. A gente cria uma aula espetáculo e na pedagogia Griô tem muito dessa coisa do Encantado, de você encontrar quem é o seu Encantado. Eu não entendia muito bem essas coisas, mas aquilo tudo me provocava, mexia, encantava. O Encantado a gente chama do Griô aprendiz, então tinha essa coisa de assumir o lugar do aprendiz, do não saber. Essa foi a porta para assumir que agora você vai ser uma aprendiz das tradições, porque eu estava encantada por tudo então eu queria fazer tudo. E o Chico ficava “menina tu tem que escolher o que tu quer fazer, uma hora você tá tocando tambor, outra hora tá brincando de boneco, outra hora que botar palhaço”. Mas aí como essas vivências da cultura popular mexe muito forte com nosso inconsciente, nosso imaginário, com sonhos, fui entender depois que é um lugar ali comum né: a Celestina no Mamulengo as pessoas falam São Saruê, a terra do imaginário, esse lugar da encantaria. Fui entender depois na espiritualidade Aruanda Juremar que as cidades encantadas são esse lugar que é (como se fosse), o inconsciente coletivo, onde estão esses arquétipos que a pedagogia Griô me ajudou muito a compreender esse vocabulário (encantado, arquétipo, Jung, raízes afro-brasileiras, indígenas). Fui aprendendo a pedir a bênça para chegar nesses lugares, então começou a vir muito forte as imagem da velha. Fiz uma oficina de construção de boneco e fiz uma velha sem pensar muito. Fui fazendo um boneco, quando vi era uma velha e aí eu sonhei com uma velha que chegava para mim e era isso, ela era da minha família e tinha uma mão muito grande. Me mostrava a mão e aí eu estava com a boneca de cabaça que eu tinha feito e ela pegava o nariz da boneca de cabaça e botava em mim “tipo você também é a boneca que vai brincar”, e aí foi que pensei “cara é isso, eu vou fazer, eu vou ser a boneca que vai botar a figura”. Eu não tinha muita referência do Cavalo Marinho, tinha visto Seu Estrelo mas não cheguei perto porque eu tinha medo do Seu Estrelo, de chegar perto porque era tudo tão forte, então assim eu achava as pessoas tão lindas tão incríveis, eu não conseguia nem chegar nesse lugar porque é muito grande. Foi rolando e eu comecei a brincar a Carona com o nariz de cabaça e a brincar com a velha como boneco e fui fazendo umas experimentações muito em escola, sempre acompanhando muito o Chico. Uma amiga montou uma Mamulengo, Vereda dos Mamulengos, e aí pronto, comecei a brincar nos espaços. Ia ter um evento, aí eu ia lá brincar, ação voluntária, manifestação, fui muito em manifestação, toda manifestação que tinha eu ia para brincar. Eu ia para feira, bem laboratório, já nessa pegada de laboratório, como estava na UnB também, tinha essa visão. Tudo isso é laboratório de criação, vou me jogar, só que aí a UnB foi ficando num lugar bem distante porque essa vivência do Ponto de Cultura começou a me chamar muito e ficar muito forte, aí eu conheci a ayahuasca também, tomei pela primeira vez e foi uma arrebatamento. Um lugar que estava buscando dentro de mim, a força me falou “está dentro de você”. Isso trouxe um centramento muito forte de que toda aquela brincadeira fazia parte de um grande projeto, todas essas manifestações, essas tradições faziam parte de um grande sonho que os ancestrais tinham sonhado. Que haveria uma geração onde nasceríamos livres, onde não teria mais o cativeiro e onde poderíamos cantar, dançar e tocar tambor onde quiséssemos.
Foi acontecendo, essa coisa da caminhada, primeiro chegou à história das cabaças, fazer boneco de cabaça, aí chegou o sonho, você vai seguindo. Vários conflitos existenciais “meu Deus, largo a UnB? Fico em Brasília? Vou viajar?”. Foram vários dramas, eu saí de Brasília, fui pra Bahia fazer uma vivência lá de circo, fiquei um tempo lá no circo do Capão. Fiquei um tempo em Lençóis no Grão de Luz e Griô, voltei e fui morar no Mercado Sul. Me joguei ali com a galera de estar fazendo as coisas, engravidei, tive 1 filho, e a Carona que era essa figura da palhaça, essa figura meio mambembe se jogando no mundo de carona na vida, começou a mudar porque mudou o meu lugar no mundo, e aí eu comecei a entender esse processo de quê a figura de alguma forma era uma projeção minha de entender o mundo. Eu ainda brinquei a Carona um tempo, então quando meu filho estava com uns dois anos eu estava com uma insatisfação muito grande com meu trabalho com o que eu estava fazendo, tudo muito tosco. Sabe quando vem uma necessidade do tipo: eu preciso aprender coisas novas! Me sentia meio estagnada, aí fui atrás do Seu Estrelo e na qual estava dando uma oficina de teatro Popular de figura lá no Mercado Sul. Me vi dentro do brinquedo, isso foi um giro de chave na minha cabeça, falei “uau, eu preciso tá nessa roda”. E aí comecei a ir para a casinha brincar, foi uma época que o grupo estava passando por um uma super transformação. Saiu um monte de gente e só tinha ficado três figuras. E aí eu cheguei e a galera ficou assim “fica pelo amor de Deus”, e aí entrei, me joguei fortemente na vivência de aprender os passos, aprender as danças, aprender o mito. Acho que o tico percebeu muito da minha entrega, o Tico e a Dani, a Dani na época fazia parte do Seu Estrelo, Dani Freitas que é uma das fundadoras junto com Tico. Dani, por exemplo, é uma referência pra mim de mulher brincante, que foi silenciada também no processo, mas eu super reconheço ela. Pra mim se existe Seu Estrelo hoje é porque existe a Dani. E aí é isso a Dani me fez uma encomenda “poxa você tá aí aplicada no estudo do mito, a gente vai fazer o festival de cultura popular e tá com uma ideia de ter alguém contando a história do mito e eu já tinha um trabalho de fazer oficina com criança e nossa na hora. Pensei pô vou criar uma figura para contar história, eu já tinha tido umas experiências nas oficinas do Mercado Sul de buscar a história do lugar, a história das coisas e já tinha ali no ar essa coisa da velha que era boneca. Ainda não estava muito claro como seria isso mas quando a Dani falou eu pensei “é isso vou botar a figura que é uma contadora de história e vai ser a velha” e ela vinha assim como download mesmo sabe. Eu lembro que eu tive uma conversa com Tico lá na casinha bem massa e já estava nessa vivência forte da pedagogia Griô, trazendo muita coisa dos mestres/as para ele, e aí ele me mostrou uma música do Siba, Vale do Jucá. Na música ele fala assim “onde nossa lembrança se esconde” isso ficou na minha cabeça. Inicialmente chegou como Maria das Esquecidas e a ideia era trazer a história dos que foram esquecidos, mas aí com essa coisa da música eu pensei não é a Maria das Esquecidas porque na verdade eu quero é lembrar, eu quero é trazer a lembrança. Pronto aí chegou isso, a Maria das Alembranças, eu já tinha a história de fazer essa primeira apresentação, aí fui fazer o corre de figurino, de criar, de fazer o cabelo, e me veio essa imagem do cabelo dela com grandes raízes, de visualizar as coisas e acreditar no que você tá vendo. Isso é uma coisa que veio muito forte, ter fé no sonho, na coisa que vem e materializar. Isso foi um aprendizado que tive muito na oficina de bonecos, construir mesmo, botar a mão na massa, ter que materializar. E aí foi isso, surgiu a Maria das Alembranças, a brincadeira aconteceu lá no festival, não lembro o número, mas era um festival de cultura popular na tenda Erê, era um espaço para crianças. A primeira história era contar o mito do Calango Voador, trechos do mito e o Chico me falou que agora eu tinha encontrado algo e que era pra eu ir fundo, me deu uma bênça. Até então ele me provocava muito com essa história da Carona, mas quando ele viu a Maria das Alembranças, ele falou “vai nisso aí”, aí eu botei fé mesmo, chegou um negócio diferente - deixa eu prestar atenção nisso. Foi assim que começou e depois que começou foi vários formatos. Experimentei fazer ela mais jovem, fazer ela mais nova, experimentei misturar ela e a Carona, porque eu não queria desapegar da Carona. A Carona era da palhaçaria né, aquela coisa do não querer deixar morrer certas coisas, mas hoje por exemplo, eu realmente deixei a Carona. Foi em 2006 que eu fiz a boneca de cabaça, só que é isso, naquela época eu nem imaginava a Maria das Alembranças, a sensação que eu tenho é que o caminho vai se revelando à medida que você vai botando fé, uma coisa foi puxando a outra e hoje eu entendo que tudo aquilo era a dona Maria chegando devagarzinho para se mostrar. Na época eu não tinha maturidade nenhuma para compreender que ela era uma Encantada. Maturidade espiritual, inclusive, para entender como eu entendo hoje. Hoje eu realmente entendo que ela é minha tataravó e que ela tá aqui me pedindo “minha filha faz esse trabalho aí porque essa história precisa ser contada pra gente inclusive limpar essas coisas aí da nossa linhagem, dessa linhagem feminina das mulheres indígenas”. É forte para caramba né porque assim eu não sou indígena, mas eu sei que é daí que eu vim e aí lidar com isso de uma forma cuidadosa.
Pra você seu trabalho artístico representa uma luta, um giro de perspectivas, um contra-ataque poético? O que é uma contação de história? O que é uma contadora de história e o que são as histórias - as Alembranças? Qual a urgência disso tudo?
Massa essa provocação! É tudo isso aí que você colocou: uma luta e um contra-ataque poético. É assumir o lugar do entre mundo, de estar nem em um nem em outro. Entre mundo é a fronteira, porque a gente tá aqui falando de um tempo que já foi e é importante falar desse tempo que já foi pra gente poder construir nesse futuro. A questão central é esse fio que foi cortado. Como eu posso ser quem eu sou se me tiraram minha história, como um povo, como uma nação, como o povo brasileiro pode ser um povo ou uma nação se tiraram nossa história, como a humanidade vem sendo humanidade se foi tirado parte da história? Então esses lugares existem só que ficam silenciados porque não podem ser assumidos. Isso gera a grande doença, a grande doença da humanidade é esse vazio, esse não pertencimento, o não reconhecer-se no outro, não reconhecer o outro como seu semelhante. Toda essa doença que gerou o processo de colonização onde um povo se sente superior a outros povos, que se sentiu no direito de chegar no território dessas pessoas e matá-las, roubá-los.
As histórias delas são urgentes e necessárias como um bálsamo de cura. É um antídoto para o veneno que tá aí. São corpos que não se identificam, pessoas que se olham no espelho e não se reconhecem, a gente tem esse cabelo e não reconhece, esse nariz, esse olho. Então para mim contar essas histórias é um ato político totalmente. É direito da existência, não só da resistência. Existiram essas mulheres e elas simplesmente não estão em lugar nenhum. As nossas tataravós não estão em lugar algum, é como se elas não tivessem existido. Mas aí eu pergunto quem era a índia pega no aço? Qual era o nome dela? Ela nem tem nome, as pessoas não sabem me dizer o nome dela. Eu sinto nesse lugar tanto transcendente de uma cura, quanto num lugar político - da luta, da denúncia. Pra mim é denunciar. Como assim a gente não sabe da história nativa desse Brasil? O que a gente sabe sobre indígenas? É uma diversidade de povos e de línguas, cada povo com sua cosmovisão, e a gente não sabe nada, a gente não herdou o sobrenome deles. Diante dessa falta de conhecimento a espiritualidade se mostra como um caminho pra gente poder acessar, porque os nossos ancestrais estão dentro dos rituais. Dentro da tradição oral, eles não escreviam livros, mas tinham as danças, os encantos. Eles guardavam esses saberes históricos. Nosso povo encontrou uma forma de poder guardar esse conhecimento, essa ciência, eu penso que a gente não sabe de nada, por exemplo, hoje a gente vai para uma mata e a gente não sabe absolutamente nada de uma mata que está cheia de vida e de informação, não conhece uma árvore e não é só pela árvore. Cada elemento carrega memória.
Qual é sua via de ataque poético? Como você constrói essa reconstrução da memória? Qual é a sua arma poética?
Difícil essa pergunta hein. Hoje eu tô vivendo um momento da minha vida em que eu não estou mais na cidade, eu não quero mais reconstruir a cidade, eu quero é sair e que eu acho que ela realmente é insustentável. Então hoje pra mim passa muito por buscar formas possíveis de vida. Aprendendo com essas histórias, com essas ancestralidades. Só brincando não basta, não é o suficiente, precisamos buscar novas formas de vida. A grande arma que hoje estou usando é a vivência, a vivência coletiva - a transformação. Precisamos modificar, eu não posso ir lá brincar e depois voltar pra minha casa e continuar fazendo as coisas que só está alimentando a doença e o monstro. Aquela frase “pequenas as pessoas em pequenos lugares fazendo pequenas coisas vão mudar o mundo”. Precisamos nos descolonizar.
Como foi o processo criativo do solo da Maria das Alembranças no espetáculo das Mulheres Brincantes?
Muita coisa já estava pronta nesse percurso que eu te contei. Foi surgindo o figurino, o cabelo, as coisas que ela tem pendurada na saia, o adereço da cabeça. Chegava alguma coisa e eu falava “nossa isso aqui é Maria”, chegavam coisas que faziam sentido pendurar ali, então tinha isso. Eu tinha a primeira parte do solo em que eu chego falo com público, aquilo ali já era o que eu vinha brincando desde aquela história quando eu ia de Carona. Aquela primeira parte já acontecia. E aí vem a segunda parte que é onde ela sentava e começava a contar história, isso aí era de quando eu contava as histórias do mito. Eu já queria contar história de mulheres e tudo isso vem com a pedagogia Griô, de acessar essa ancestralidade. E aí entra a história da família de uma índia pega no aço que quer dizer que ela foi uma índia estuprada e que essa história nunca foi contada com esse olhar e aí eu pensava “eu preciso contar essa história, eu preciso fazer essa denúncia histórica”. Eu não sabia muito bem como contar, comecei lá em casa, fiz umas pesquisas. Comecei a ler algumas coisas pra me dar algum fundamento. Eu já tinha feito uma escrita da minha história de vida, da minha ancestralidade que é uma das atividades que a gente faz no curso de formação da pedagogia Griô, então eu já tinha escrito uma versão da história dessas ancestrais, e tinha muita dor, muita dor nessas histórias. Então o solo veio como uma vontade de precisar colocar essas histórias pra fora. Esse grito tá aqui e eu entendi que a melhor forma seria ali no solo, trabalhando isso. E aí teve a ladainha da capoeira que eu fiz. Uma ladainha numa manifestação do dia 8 de Março, fizemos uma roda de capoeira das mulheres lá e aí eu cheguei em casa na força da militância da mulherada botando a boca na rua e fiz a ladainha daí. E aí o solo foi meio que juntar essas coisas que tinham ficado pelo caminho. Tinha a ladainha que não tinha feito nada com ela, tinha a abertura da Dona Maria que eu nunca tinha parado para construir algo cenicamente, tinham várias coisas soltas. O cajado foi um presente da Mata mesmo. Passei uma temporada em Serra Grande fazendo algumas caminhadas na Mata Atlântica com um amigo que cuidava de um terreno e a gente estava buscando algumas nascentes. E aí chegou esse cajado pronto ali no meio do caminho, e aí eu pensei “opa isso aqui é responsabilidade”. E a vivência na Jurema foi onde começou a vir esse entendimento, por que o terreiro é tipo o palco só que é gira. Os Caboclos quando chegam fazem um solo e essa vivência me deu uma segurança de entender como esses lugares na verdade estão próximos. Em pensar que o teatro originalmente era um grande ritual e receber as bênçãs. De chegar em mim e falar “vai minha filha, não tenho medo, vai lá, a gente quer que você continue nossa história, que você conte as histórias. A gente quer que a nossa história seja contada”. E de fazer isso com muito cuidado, com muito respeito. A minha intenção com o solo foi de fazer um fechamento, como eu estava te falando, fazer um grande espetáculo - a grande cidade, amarrar isso porque tem uma nova geração chegando para brincar, para fazer e eu sinto que eu já tô velha. Estou me despedindo desse lugar para ocupar outro lugar, nos bastidores mesmo da feitura, e que eu posso estar lá também no palco e fazer se for da vontade. Entendi que eu não posso estar só lá, eu tenho que estar lá, mas tenho que estar fazendo outro serviço também. Fui entendendo que isso é um servir. Quando comecei a fechar lá em casa a estrutura do texto, vinha muito esse lugar, uma confirmação de que é isso mesmo. No processo de criação do solo eu fui muito pra mata sozinha, conversar e escutar com a mato. Escutar o que a borboleta passando queria me dizer sabe, bem conectada com a minha verdade. O que fosse dito ali, que fosse dito a partir de um lugar. Então é isso, não é uma personagem, não é incorporação também, mas o que eu sinto que eu estava ali acompanhada de um monte de gente, não era um solo. Não estava sozinha.
:)
ResponderExcluir