Entrevista com Jonathan Andrade. Por Naiara Lira

 Jonathan Andrade é professor de teatro, poeta, ator, diretor, dramaturgo e cenógrafo, bacharel em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília. É integrante fundador do Sutil Ato, grupo teatral de pesquisa no qual realiza experimentações nos campos da atuação, da cenografia, da dramaturgia autoral e das poéticas narrativas. Em sua trajetória artística assinou a direção de diversos espetáculos premiados, como os recentes "Tsunami" e "Autópsia". Em 2017, apresentou em Lisboa e Porto a prática Aisthesis, com o qual também desenvolveu trabalho com Vera Mantero, considerada como uma das maiores coreográficas europeias do século. Foi aí que a performance criou raízes em sua prática artística.

Link da entrevista: https://youtu.be/9KyJsA6BmYg



J: Eu sou Jonathan, acho que eu diria que eu sou esse tanto de coisa que busca ouvir, que busca escuta.Trago uma ascendência muito forte, meus antepassados, meus guias, meus guardiões, minhas forças, minhas fúrias, meu suor, minha labuta, minha periferia e os outros espaços também que eu fui transitando. Violência, arte, acho que tem muita coisa dentro desse corpo e muita história porque esse corpo negro, não binário, é discendente em várias perspectivas, muito livre e ao mesmo tempo muito aprisionado como quase toda a corporeidade preta vinda da periferia. Alguém que eu acho que tem na poesia, a possibilidade de ressignificar absolutamente tudo, a minha doença, a minha droga é a minha dádiva, a minha cosmologia onde talvez eu viva a minha ancestralidade para além dessas terras, para outras dimensões possíveis onde, talvez, as minhas células se rebelem em festa! Essa possibilidade de transcender pela linguagem artística que sempre esteve presente no meu corpo desde criança, assim, algo que também a gente sabe enquanto uma qualidade preta né?! 

As coisas estão todas conectadas, o vento e a dança não tão distintas, uma criança que conversa com vento desde sempre então, filho de Iansã. Descubro isso depois, mas já sou batizado desde sempre por ela, a gente conversa sempre desde 6, 7 anos de idade. Descubro na UnB, quando eu vou estudar, ainda sobre o código e o nome de arquétipo, eu falei “opa, acho que sou filho de Iansã”. Aí, com o passar do tempo e toda essa reconstrução que a gente vai tendo, poder se evocar de memória, de vida, a gente vai entendendo de onde a gente pertence e eu vou lembrando de várias coisas como essa: eu sempre conversei com o vento, sempre brinquei de conversar com vento e brincar numa perspectiva muito lúdica, de conexão com o que é essa existência, com quem é esse código como um todo. Mas não sei também, acho que sou essa figura com muitas fissuras, com muitas contradições, com muitos contrastes. Sei e não sei falar de mim, palavroso oralidade herdada né?! Mas sou de uma família de médiuns, de benzedeiras, de gente muito simples, de gente operária e também sou filho de professores. Então eu honro, sobretudo, essas ascendências todas, esses antepassados todos que estão em mim. Eu acho que esses são os meus títulos, talvez as imprecisões todas que vão nascendo em mim de alguma forma. 5’37”


N: Muito bom! Muito bom saber, muito poética a sua apresentação. Agradecida. Bom, vamos para as perguntas então. Dos inúmeros trabalhos que você realizou dentro do âmbito das artes cênicas, qual ou quais trabalhos você considera ser o que mais te representam, os que mais te apaixonam e por quê?


J: Eu acho essa palavra muito difícil o que me “representa” né?! Acho que tanto quanto me definir, porque há uma condição de instância tanto na vida quanto em jogo né?! Tanto como eu percebo me construindo diariamente, minuto a minuto ou pelo menos, não sei se porque talvez parte do meu corpo seja de fato feito de muito vento, eu me vejo com muitos vetores, muitas direções de verdade então assim, é sempre muito difícil ancorar mesmo que eu tenha em mim uma imagem de árvore, um baobá, muito muito supremo, sublime para mim, ocupa uma grande inspiração de alma também. E talvez eu me veja árvore também tenha relação com árvores, com essa dualidade. 

É muito difícil porque eu me sinto representado por todos os trabalhos, absolutamente todos os trabalhos, inclusive os que hoje eu talvez tenha vários distanciamentos e tensões. Ao ler esses trabalhos, como eles se configuraram ao longo do tempo e da historicidade da minha carreira né?! Mas todos eles me tiveram absolutamente vertical, integral, na explosão do que eu poderia, era, tinha e podia ser e estar dentro de uma ética de presença que sempre foi ser absolutamente ressonante com o mundo e com aquilo que me adoece, com o desejo Implacável, tipo descamar e ser muito de verdade na troca e no encontro. O encontro sempre alimentou então, acho que esses trabalhos todos foram sedentamente, incansavelmente, busca de encontro, de escuta, quando tudo isso a gente sabe que vai nascendo e renascendo cotidianamente. 

Eu participei de uma live, recentemente, que as pessoas me perguntaram sobre o guarda-chuva, primeiro texto que eu ganhei prêmio, dramaturgia, isso ainda como aluno não na UnB, foi em 2004. Cara, guarda-chuva é muito honesto, é o que eu tenho a dizer, é uma descrição, eu escrevi o guarda chuva chorando, chovia muito na dramaturgia, na narrativa na história, e assim foi o meu primeiro processo de composição, eu sou muito simbiótico com tudo aquilo que eu faço, porque eu escrevo assim, almático, nessa palavra que Bruna Martini me deu de presente no Pardim, aí eu nunca mais deixei de usar porque eu falo muito em minha alma em alma em alma e aí cria esse adjetivo, ela brinca comigo nesse adjetivo “você é muito almático” “Ai Bruna, que linda essa palavra, vou usar.” Então faço também um axé para Bruna, e eu eu tenho esse caminho assim, então eu olho para o guarda-chuva e vejo que ele está estruturado, por exemplo, numa num perfil de dramaturgia muito clássico como aquelas well made play, tipo tem tipo Ibsen, tipo Eugene O'Neill e toda aquela dramaturgia que tem uma estruturação muito fechada, são grandes diálogos, revelar de conflitos, é muito incrível mas ao mesmo tempo eu, particularmente, hoje vejo que guarda-chuva me representa contextualmente, enquanto afeto, enquanto comunicação, enquanto poética de uma naturalidade simbólica, também a poesia friccionando os diálogos muito naturais e uma esgarçar de humanidade que se põe muito vertiginosamente. O único cruamente que se mantém no meu trabalho. Ao mesmo tempo, eu acho que tem muitas questões burguesas que não fazem parte, que para mim é uma influência de um período acadêmico, por exemplo, que talvez não tenha tanto a ver com as minhas ascendências, mas foi muito mais, há ali o impulso de um universo que é belo também. Eu não só hoje tenho tensões, como analiso a simbologia daquela dramaturgia mas me representa. Então, tudo me representa e tudo é confessional para mim, a minha entrada na arte é absolutamente confessional. 

Agora, talvez a gente possa falar sobre como eu me sinto representado em cada uma delas ou quão próximo ou distante eu hoje me me coloco dessas obras porque eu acho que tudo isso é muito orgânico, a gente às vezes não sabe para quê caminho a copa de uma árvore vai se dar, então eu hoje olho para esse pomar de obras e trabalhos também e tem árvore que eu não subo mais, sabe? Que eu agradeço, que eu louvo, que eu reverencio, que eu sei que ela de fato nutre a terra que eu piso tanto quanto eu a nutro mas então acho que seria muito circunstancial, eu teria que ser muito específico em cada trabalho para talvez junto poder te dizer aqui eu acho que hoje tem esse Jonathan, sabe? Tanto quanto enegrecer as minhas perspectivas, por exemplo, me faz ver que o “Terra de Vento”, que foi o outro texto que me deu um prêmio, e cheguei a fazer uma montagem com patrocínio da Funarte, eu acho, enfim, eu hoje tenho uma noção de uma cosmologia que opero justamente porque tenho uma visão enegrecida sobre a minha trajetória. A Terra de Vento, minha mãe Iansã, eu não não tinha consciência sobre a recorrência do vento na minha vida. Tô falando porque o poético que existe, uma ética dentro do poético, no caso da minha ascendência, é uma cosmologia. Ele não está dissociado da natureza das porções, entendeu? É porque eu tenho sempre receio de falar da espiritualidade de um trabalho porque há uma banalização ocidental e branca sobre isso, mas eu vou dizer porque é sobre esse lugar e sobre essa cosmologia que integra as coisas não dissocia a partir de um padrão de racionalidade que muitas vezes é uma herança que a gente tem né?! Ocidental e branca. Para mim, o meu corpo artístico, opera numa outra cosmologia e ver o terra de vento, por exemplo, hoje eu olho tantas incidências dessa negritude, desse legado e dessas heranças todas porque eu dirigi Terra de Vento com nove mulheres. Qual é o número de Iansã? Eu não sabia, é nove, então eu me arrepio aqui de falar porque eu acho que há outras operâncias, outras danças que vamos vivenciando a partir da escuta que a gente também passa ter. Meu trabalho, minha composição não é só minha, não vem só de mim, vem de muita gente dentro de mim. Então a minha autoria é uma autoria de um legado, é muita gente junto, muita gente minha junto de mim nesse processo de escuta e reverberação de escuta de vida, e aí as obras, de um modo geral, acho que todas me representam, até as que eu rejeito, até as que eu tenho vergonha. 


N: Muito bom, faz parte do legado, faz parte da história.


J: Eu não sei se eu te respondi.


N: Com certeza, porque isso faz diferença e conversa muito comigo no sentido de que eu fui cristã pela maior parte da minha vida, fui de Igreja, carolíssima pela maior parte da minha vida, e apesar daquilo não fazer mais parte da minha vida, eu comecei no teatro dentro da igreja, eu era protagonista da minha mãe em tudo o que ela inventava, e minha mãe sendo uma diretora, uma produtora, hoje eu sei o tanto que a minha mãe é uma artista poderosa e incrível dentro daquele núcleo da Igreja.  Crescendo eu não tinha essa noção, mas hoje eu entendo perfeitamente como todas aquelas peças, todas as vezes que eu subi no palco pra falar de Jesus, como aquilo me nutriu, como aquilo me colocou no lugar que estou hoje, nesse lugar que eu reconheço enquanto teatro, teatralidades, enquanto várias coisas que eu não reconhecia crescendo, pra mim aquilo era igreja e arte era outra coisa. Mas é tudo misturado e isso tudo faz parte de mim. E o Fernando Villar, no meu primeiro semestre de artes cênicas, me falou “mas você tem muita vivência aí dentro de você, de onde vem isso?” “Não gente, não tenho vivência com teatro”, aí eu cheguei na outra semana falando, “gente, a minha mãe, a igreja” não é porque não faz mais parte de mim, enquanto dia a dia, enquanto um fogo que arde hj, que isso não fez. Então, estou completamente contemplada, agradecida. 

A próxima pergunta é: durante a construção desses trabalhos, todos, os que hoje te cabem e os que você rejeita, seja lá sobre quais você vai preferir falar, você considera que a sua negritude te levou a ter atitudes, sentimentos ou que implicou de alguma forma no resultado? Como ser uma pessoa negra atravessa o lugar desses trabalhos que você participou?


J: Em absolutamente tudo, é indissociável. Eu acho que primeiro tem uma questão contemporânea que é muito genial... Eu tava escutando uma fala do Mateus Aleluia numa Live que ele faz uma exaltação ao novo, onde ele diz que quem nasce que traz o novo e o quanto é importante essa integração. Estou falando sobre isso porque na minha perspectiva hoje, eu enegreço a cada dia, eu nasço negro a cada dia numa nova perspectiva histórica e temporal dentro de mim. Porque a gente sabe o que significa toda uma educação e toda uma percepção sobre nós, o quanto demora ser negro e o quanto ser negro é uma gradação ade infinito de busca diária, no minuto, para que a gente consiga perceber o que é a potência e a exuberância dessa racialidade que nos foi, a priori, imposta de uma forma tão desumanizada. Mas o que significa isso enquanto herança de potência? Porque é sobre isso né?! 

Então, quando você traz esse olhar sobre o quanto a minha negritude atravessa os resultados, desde sempre, quando eu entendo que esse meu DNA, quando eu entendo que minha arte de fato é mais do que eco, ela é a presentificação, porque quando a gente fala em atuação a gente tá falando de tornar a atual. Sílvia Davini falava muito isso, eu sempre penso que presença, que é o que eu mais me dedico a estudar e a pesquisar nesses últimos 15 anos, onde eu me dedico drasticamente, verticalmente, na direção de atores também, eu acredito muito que a presença é esse processo de exposição que tem a ver com inúmeros pilares, entre eles um processo de identificação e de identidade e isso é indissociável. Eu acho que a gente tem muitas heranças, tem tanta coisa para falar. Porque se eu analiso a potência da minha negritude, isso tem a ver com como, por exemplo, eu penso afeto. Tem a ver com como eu fui educado afetivamente, é muito natural com famílias e pessoas negras porque a gente foi, infelizmente, posto em diversas experiências cotidianas e sociais de vida, de existência, onde a gente o tempo inteiro teve que enfrentar e conversar, aceitar - porque foi obrigado a aceitar, se rebelar, mas sempre aceitar ou voltar com muitos processos de violência. Isso, por exemplo, eu entendo que conferiu ao meu corpo as violências diversas que eu sofri, que não foram muitas mas não foram poucas aliás, muita possibilidade, muito relevo de vida e de afeto e de emoção, muita contradição. E não pensando contradição no sentido binário, contradição não como força de choque mas como forças dissidentes em dinâmicas muito diversas sabe?! Eu opero em cima de contradições, isso para mim é técnico então há uma cosmologia, que me acompanha, de pensar movimento, de pensar encontro, acolhimento, violência, de pensar em revidar, de pensar o movimento, a palavra, oralidade... isso é porque eu sou herança preta, é indissociável. 

Eu fiz um trabalho junto com o grupo embaraça, com a Fernanda Jacob e  a Tuane, maravilhosas que eu tenho muita admiração, e elas fazem uma observação de que o meu terreiro se faz no palco. E sim, meu palco já não é branco há muito tempo, nunca foi, mas hoje eu consigo vê-lo e sabê-lo. Então, essa experiência negra da periferia, tem um lugar de honestidade, também de pulsão, de labuta, de suor e ao mesmo tempo também de dor. São tantas coisas para mim, tudo que eu fiz tá marcado por isso, como eu penso a palavra em cena, como eu… nossa só essa pergunta Naiara, dava para gente ir assim para questões muito específicas, perspectivas mais técnicas dos trabalhos, das temáticas de como isso vai aparecendo, em fim. Mas impossível dissociar, eu sou tudo isso que eu trago, que está em mim, toda essa gente que se faz presente.


N: Teve algum momento da sua vida, pra poder contextualizar melhor, que você descobriu que era negro? Ou isso era uma coisa que sempre esteve em você e você sabia? Porque eu já era adulta quando eu descobri, sabe? Eu sou filha de mãe branca, família estruturada, branca, classe média, escola particular, branquitude, branquitude, branquitude. Então assim, um dia, eu já usava o nome artístico Naiara Morena, aí Lia Maria, eu digo que ela é minha madrinha dos assuntos raciais, e ela que me ensinou muito, que me apontou muita coisa, numa mesa de bar ela falou “bicha, deixa eu te falar uma coisa…”


J: Lia da Diáspora 009?


N: Ela mesma. 


J: Rainha, amiga, amo de paixão, raínhassa, amo! Muitos beijos nela, onde ela estiver!


N: Pois é, e foi ela que me apontou isso, então eu tenho esse momento de entendimento, essa quebra dentro da minha arte, do meu fazer artístico, desse momento que eu saquei que eu era negra, eu tenho o antes e o depois. Então partir do momento que eu saquei, eu fiz um rasta, porque eu queria causar esse impacto na rua, eu fui buscando essas negritudes onde eu conseguia pegar, de rasta, de roupa de tecido africano, onde eu conseguia ter a negritude palpável, para depois abraçar e entender onde ela me tocava por dentro, no meu sentimento, na minha emoção, na minha história. Aí como eu tive essa ruptura muito grande, me interessa sempre saber, porque você diz que é indissociável, se existiu esse momento que você parou e disse “opa, eu não sou moreno, eu não sou branco, pera aí, tá rolando aqui uma confusão" .


J: Então Naiara, nossa eu acho que assim bom, esse é sempre um tema de muita complexidade para nós negros, eu acho que primeiro eu descubro a minha negritude pelo medo e pelo pavor de ser negro, porque eu descubro a partir de uma denúncia. Como a maior parte de nós, eu fui denunciado negro. Na periferia, na rua, então isso marca, eu tinha pavor de figurar entre os apelidos que eram dados aos negros retintos porque eu sabia que eu era negro, tinha os negros com tom de pele mais enegressido, tons mais escuros e todo aquele racismo que impera também na periferia, herdando a violência que foi implantada em nós ali, sobre o quanto isso é desqualificatório né?! Como a minha boca é muito denunciada, o nariz, os meus traços negroides são todos muito evidentes, então começa daí, mas a gente sabe também. Pelo menos para mim, que os processos de descoberta e de nascimento enquanto negro eles são, sei lá diários, eu tive muitos marcos de nascimento, de descoberta, de negritude e sigo tendo.

Eu fiz três cursos, durante a pandemia, sobre decolonialidade, branquitude, arte, comunicação e decolonialidade, que é um grupo que faz parte com pesquisadores do mundo inteiro, Moçambique… há muitos negros em diáspora, então assim, pessoas que estão no universo da arte, específicamente, e outras que não tem o viés da arte específica. Então é um outro parto sobre a minha negritude, estar diante dos nossos, é uma outra reincidência sobre a minha pele, um outro sentido de pele. Você falou do rasta que você foi fazer, eu já tinha feito algumas vezes na vida mas a partir dessa perspectiva de enegrecer e de reconhecer algumas heranças que eu tenho, espirituais, que foram sempre negadas e eu herdo e não tenho como fugir dessas heranças. Nem quero fugir, pelo contrário. Eu as quero muito vivas em mim, porque essa é a minha analogia. 

Mas quando você fala do rasta, por exemplo, tinha muito tempo que eu não fazia e eu fui fazer no salão com mulheres negras, algumas africanas e mulheres retintas e muito fodas, e foram 2 experiências muito muito profundas espiritualmente. Foi uma época que Oxum chega bastante próxima de mim e começa a me trazer alguns lugares, então foi uma experiência de água no salão com essas mulheres, é muito forte, vale contar depois essas narrativas em algum lugar porque essas coisas não são menores. Eu acho que a branquitude foi em algum lugar, acho que a academia me trouxe muitas potências de entendimento, de reflexão sobre o meu trabalho, me deu muitas ferramentas, tipo mestras incríveis. Todos que eu passei no meio me dignificaram profundamente na linguagem, me provocaram, instigaram muito, mas ao mesmo tempo o sistema da academia foi para mim, hoje eu entendo por muitas questões, o tanto que também foi muito traumático e muito violento. As éticas afetivas estruturam protagonismos narrativos e referenciais, tudo isso que vai marcando o corpo da gente para além de falar de um epistemicídio, de referenciais bibliográficos. Eu estou falando de uma ética afetiva cotidiana mesmo, porque é sobre isso a instância da cena e do encontro. 

A gente busca o encontro na arte porque a gente quer padecer e naufragar  nas possibilidades de afeto que existem e não existem. A gente quer fabular o afeto enquanto condição de rebelião celular, a gente pode despertar em todo mundo essa rebelião de pulsão de vida, de talvez tornar a experiência de estar vivo melhor, sei lá né?! Não sei, mas creio que dentro dos esboços de humanidade que a gente vai buscando nos nossos trabalhos, nas nossas pesquisas, a gente tá desejando vida. De alguma forma é vida né?! É esse lugar. Então, narrativas vão sendo construídas e são muito delicadas e a gente vai amordaçando essa nossa filosofia e essa nossa poética de resistência, porque ela é muito embranquecida e vai racionalizando esse sentido a partir de lugares que não são os órgãos regentes da minha palavra, da minha oratória, não são os órgãos regentes do meu assentar no palco, não são os órgãos que regem a minha presença poética, meu jogo. Não é. Nesse sentido, quando eu ia te narrar o que aconteceu na trança e eu falei tudo isso, enfim sou assim, vai ventando, ventando, não para de ventar, você me corta! Mas eu acho que tem essa dimensão da gente, às vezes, dissociar essas narrativas vivenciais dessas manifestações, esses fenômenos de afeto que para mim não são diferentes da cena. O simbiotismo com os intérpretes, com espaço, com teatro, com o espectador, esse lugar de possibilidade de abrir escuta para algo que está entre nós e sobre todas as imaterialidades que sustentam a nossa relação e a gente talvez só saiba partir da sinestesia das nossas sinceridades no encontro. É isso que me interessa também nesses dispositivos. E aí é muito, muito precioso quando a gente também entende que a construção da cena ou, como eu me coloco como artista, é uma instância que ressoa, uma ética de vida, não há uma margem. 

Os distanciamentos são tentativas de deriva de compreensão do que sejam as coisas. Eu pesquiso muito, eu anoto muito, eu tenho muitos diários e reflito sobre o meu trabalho. Daqui a pouco sou eu no mestrado e no doutorado, ainda não me convenci, estou quase convencido, mas minha alma ainda sabe. Eu sou muito sistêmico também né?! Somos, a gente foi destituído desse olhar mas somos a outras regências, enfim é porque quando você fala do enegrecimento, de nascer aí de se perceber negro e de isso é diário, então, a trança para mim, por exemplo, foi tudo que aconteceu quando eu trancei. E aí eu trancei a segunda vez e foi mais forte ainda com elas, e o que a gente viveu dentro do salão né?! Então esse estético que daqui a pouco me leva para um rio e eu estou com quatro mulheres dentro de um salão, de uma salinha, fazendo e de repente a gente é rio juntas. A partir da minha trança e do que acorda dentro de mim trançada. Eu não trabalho numa perspectiva de você estar em cena bebendo uma água “vou beber uma água”. Beber água é muita coisa, água é muita coisa. Então para mim, essas ritualidades e as de vida, estão juntas. Estou a cada dia renascendo mais negre né?! Ah sim, com certeza.


N: Muito bom, eu tive uma experiência parecida quando eu fui trançar pela primeira vez, as outras vezes foram ainda mais bonitas porque era uma só, era só eu e ela no salão, lá no Guará, a Jesus… perfeita.


J: Eu fiz no Rainha de Sabá com a Jaque...


N: Exato! A primeira vez que eu fiz foi com elas, no Raínha de Sabá. Eu conheci a Jesus numa feira, uma feira preta. Eu levei uma menina pra trançar, uma menina adotada de uma família branca e banca no mais alto nível da escala da branquitude, e a mãe dela falou pra mim, a mãe dela eh muito minha amiga, e ela me falou “cara, a Brenda não se reconhece, ela não se reconhece, leva pra dar uns rolês, trocar umas ideias q eu n posso. Eu faço o máximo que eu posso”. E eu levei ela pra trançar e foi aí que eu conheci a Jesus, foi maravilhoso esse momento daquela menina entendendo o cabelo cheio de creme, amarrado, entendendo aquela trança, foi lindo, aí depois eu passei a trançar com a Jesus por conta daquele momento que eu vivi com aquela menina, que foi assim, mágico. Muito bom.


J: É muito forte.


N: Sim, bom, já existiu algum trabalho que você iniciou completamente apaixonado mas foi perdendo o tesão ou mesmo a voz, o espaço, não necessariamente só o tesão, mas que você foi perdendo aquele espaço que você iniciou e que você considera que esse desencanto se deu por você ser um dos únicos negres ou o único negre presente? Que você foi se sufocando naquele espaço? Não necessariamente sendo sufocado em um movimento consciente, mas tipo, “eu não quero estar aqui”, “isso aqui não me pertence”, “muita branquitude ao meu redor me calando”, conscientemente ou não.


J: Naiara eu tenho a sensação de que cada pergunta dessa que você tá me fazendo a gente deveria ter só uma por 3, 4 horas porque eu tô tentando enxugar muito, assim, na sinceridade, eu acho que eu tenho muita coisa a dizer meio que inesgotavelmente sobre cada questão e daí eu espero não estar sendo tão superficial assim com as respostas, porque é muito difícil, cada hora a gente vai descamando um outro lugar discursivo necessário e que a gente vai também vai tirando uma películazinha e vai “ah tem isso aqui” também dentro disso, dentro desse edifício de experiências, de coisas que constituem o trabalho, a vida, as éticas, seu comportamento, tudo que a gente é enfim. Muito séria essa pergunta porque eu acho muito difícil que exista um negro um negre e uma negra que não perca espaço no seu próprio trabalho. A gente está sempre sendo tirado, apropriado, roubado explorado e invisibilizado. A gente está sempre tendo que lutar até para poder ser mãe e pai do próprio filho, da própria obra. Esse é o sistema. Você sabe disso. Eu estou falando de um mercado, estou falando de uma história. Eu vou fazer 20 anos de trabalho, dato 20 anos que eu falei ‘o palco não tem volta’ dato a parte disso, quando eu sabia que eu estava assentado em cima do palco. Então, vai fazer 20 anos neste lugar que para mim é muito sagrado e eu não conheço um dia, um trabalho ou uma relação profissional ética que a gente tem que não seja uma tentativa constante de não perder espaço, de tirarem o nosso espaço. Eu não sei ser artista negro que não seja lutando pelo meu espaço e contra um apagamento desmerecimento da minha voz ou uma subauterização mesmo, tanto da minha instrumentalidade profissional, técnica, trabalho, ofício, lida, referências, quanto afetiva. Na prática, não existe. 

Eu acho que há processos muito complexos, não tô falando isso desconsiderando a complexidade de todos os processos na medida em que a gente percebe que o nosso enegrecimento é nascimento e renascimento constante e o movimento cíclico germinante, tanto quanto está aí a natureza, que derruba, no que renasce, no que quebra, no que se reconstruiu, no que tá nascendo... tudo isso mas também encontros com pessoas que não entendem mesmo, entendem até a página 3 o que seja racismo estrutural, não entendem. E isso é adoecedor porque são pessoas que te amam, que você trabalha com elas e que você movimenta toda a sua força de trabalho na construção do trabalho dela, inclusive, mas ela se apropria das suas narrativas, ela se apropria de todos os seus discursos, ela não te credita publicamente, ela vê que você está sofrendo uma série de racismos, apropriações e invisibizações em detrimento do fortalecimento da imagem dela, que você construiu e convidou, mas ela segue lucrando e ela segue fingindo que não tá acontecendo, mesmo você sendo a fonte e seiva daquela nutrição, daquele trabalho que ele é seu. Você convidou. Então, tem questões muito violentas na lida, eu poderia falar sobre isso de formas, de n maneiras, mas em todos os trabalhos, principalmente nas dinâmicas inter raciais, existe um processo de apropriação, de invisibilização que é quase DNA, que foi instituído ali sabe?! São padrões que estão introjetados na forma de lidar com a gente.


N: Sei demais.


J: E isso vai desde como as narrativas vão sendo construídas no interior dos trabalhos. Geralmente é pós trabalho, geralmente é pós, quando a coisa foi maravilhosa, quando você tá expondo para o mercado ou para outras instâncias em que a branquitude não se sabe para além realmente de um protagonismo, de uma dinâmica que não seja subalternizadadora. Mesmo assim é muito triste. Eu tenho eu tenho família interracial tá?! Eu estou falando isso porque eu também falo em relação aos legados que existem e são uma complexidade. É muito menos um lugar julgador, mas é um lugar que é muito difícil trabalhar com com a branquitude nesse exercício de escuta né?! É muito, muito delicado e a gente, quanto mais a gente se emancipa, e a gente é muito consciente do que a gente é, até como propositor, proponente, produtor do projeto, como tudo o que significa como a gente sabe, como a gente é lido no exercício de “Oi você tá pisando no meu pé... Oi você tá dançando em cima do meu pé e sou eu que te chamei para dançar nessa pista você não tá percebendo você tá me machucando”! E a gente é facilmente, dentro do lugar que a gente teve e ama, as emancipações que a gente tem, intelectuais, enfim, afetivas, todas, a gente vai se tornando figuras arrogantes e figuras egóicas. Porque o branco adora refletir isso na gente. O narcisismo não é problema nosso. Narciso morre, é condenado não porque ele é vaidoso, é porque ele é branco. O que condena ele é a branquitude dele, sinto muito, ele não pede licença para a água sabe?! Então assim, eu estou sendo muito feroz nisso porque é muito difícil a gente falar de inserção em éticas de mercado e de criação que não esbarrem em processos de violência e de abuso em relação a gente assim. É óbvio que isso é muito complexo porque há muito afeto também, óbvio, há muitos encontros lindos e maravilhosos que estão juntos disso. Mas a pergunta que você me fez é específica e ela acorda esse lugar que eu não teria como dizer, quanto mais a gente emancipa Naiara, em relação a negritude da gente, quanto mais a gente percebe o racismo, quanto mais a gente enegrece o olhar da gente para o que esse sistema faz e segue fazendo, mais difícil é porque a gente vai se ver nas dinâmicas estruturais desse racismo, aí vc fala “meu deus, como é que eu vou falar sobre isso? Como é que eu vou falar? Só tem branco aqui. Como é que eu vou falar sobre essa questão tão delicada?” 

       N: Muita gratidão, muita gratidão mesmo por essa fala, eu estou num processo, dentro da academia e dentro do meu mestrado, em que eu entendi durante a minha prova, durante a minha entrada, porque eu escrevi o meu pré-projeto com muita ousadia que é “eu só quero entrar nesse espaço embranquecido da academia, se for assim”. E eu escrevi, eu vou dar no semestre que vem uma matéria apenas para pessoas negras dentro da UnB, uma matéria que apenas pessoas auto declaradas vão poder participar daquela experiência. Eu achei que ia ser acusada e não, eu tirei 90% e falei “ah, então na entrevista eu vou apontar mais o dedo ainda” pq era uma banca só de pessoas brancas, não tinha nenhuma pessoa negra naquela banca. E aí quanto mais eles me perguntavam e quanto mais eu me abria para deixar aquela raiva inteira passar, sabe? Pra deixar aquele rio, a minha nota foi 93 e eu falei “ok, existe um espaço aqui para eu falar o que eu preciso falar da maneira como eu quero falar, então eu não vou me segurar”. Axé.

           

           J: Maravilhosa Axé meu amor amei conversar brigado também por esse momento eu não quis eu não quis ler e me preparar para perguntas assim porque aí eu também começo no lugar de muita elaboração e eu tenho gostado muito de só ser esboço porque as coisas né São águas de Rio né tenho preferido isso mas um cheiro e vamos se encontrar no palco vamos se encontrar Vamos fazer um projeto gata vamos fazer um teatro vamos levar essa raiva para o palco já fiquei com vontade.


N: Vamos! Eu estou escrevendo, agora eu descobri o cinema, aí estou nesse flerte. 


J: Menina também to flertando com cinema também depois a gente conversa também tô incrível 


N: A Empregada da Sufragista serão 50 mulheres negras e você não ache que você não vai chegar nesse espaço 100% negro, exclusivo, e que você não vai fazer uma preparação de elenco, sabe, uma dinâmica com as minhas atrizes, não ache que você está de fora!


J: Axé! É claro que eu vou claro que eu vou maravilhosa um beijo tá obrigado obrigado.


N: Muito grata! Ah! Adorei! Um beijo! 


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