Entrevista com Daiani Brum, realizada por Manuela Castelo Branco
Exercício 2: Entrevista
Entrevista: Daiani Brum
Sobre Daini Brum: Daiani Cezimbra Severo Rossini Brum é palhaça e doutoranda em Teatro (UDESC), mestra em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2017), bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria (2012). Formou-se em palhaçaria na Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria, no curso de Formação de Palhaços para Jovens (2014). Dedica-se à atuação palhacesca hospitalar junto ao grupo Doutores Risonhos (Chapecó, SC), à criação artística autoral com a Cia Lunáticas de Palhaças (Florianópolis, SC), às ações artísticas, teóricas, formativas e de pesquisa na área de Artes Cênicas. Tem experiência em interpretação teatral, máscaras, iluminação cênica, pesquisa e palhaçaria com ênfase na atuação de mulheres e nas poéticas dos contextos hospitalares.
Entrevista realizada a partir do StreamYard
Data: 15\10\2020
Horário: 10h00
Manu: Oi, lindona.. E aí tudo jóia? Gostou da recepção? ( referindo-se a faixa em tela, com os dizeres : “Bem vindes!!!!” e “jázinho começamos”)
Daiani: Adorei.
Manu: Ah, que bom amiga...Eu tô gravando porque tem que fazer tudo... Entendeu? E o professor ainda falou que tem que editar tudo aí eu tô “toda toda”. Puxa, eu tenho que agradecer desde já, porque você é uma inspiração para mim. E a gente ‘bate um bolão’, a gente conversa tanto sobre as nossas pesquisas… E você é minha parceira de pesquisa, de caminhada mesmo viu, Dai?
Daiani: Ô Manu,
obrigada pelo convite. Eu também sou super sua fã, admiradora de longa data. E que bom a gente
tá se encontrando aí mais uma vez.
Manu: Nossa, que a gente se encontre sempre nessas encruzilhadas aí, mana.
Daiani: Agora
virtualmente nesse rolê meio pandêmico, apocalíptico... Mas estamos aí.
Manu: Ai Dai…. Então é isso. Eu bolei aqui cinco perguntas, ainda não é a nossa entrevista oficial para pesquisa, mas já é né?! E é para um exercício que o Marcus Motta, professor da UnB, pediu. Ele quer que a gente faça práticas de entrevista . Então eu bolei aqui umas perguntas norteadoras para nós tá? Então sem mais delongas eu vou começar, tá? Eu queria que você relacionasse as seguintes palavras: nome, ocupação e gosto.
Daiani: Nome,
ocupação e gosto…. Pensando na palhaça né? Ou não?
Manu: Pensando que essa é a minha pergunta primeira… (coloca em tela essas três palavras).
Daiani: Acho que o nome é a primeira palavra a ser relacionada, Ella parte muito de uma identidade que a pessoa apresenta, a partir ali da sua nomenclatura. Então.. Acho que isso acaba indo muitas vezes contra os gostos das pessoas nas suas determinadas ocupações. (ri). É…. Não sei, talvez… Seria essa a relação. (ri).
Manu: Então eu vou pedir que você se apresente em relação a essas três palavras.
Daiani: Então... Meu nome é Daiane Brum, a minha ocupação é palhaça e pesquisadora, e atualmente tenho muitos gostos, principalmente voltados para a palhaçaria e suas relações com a sociedade. (pausa) Acho que é isso...E umas plantinhas aqui e ali. Uma dançinha Vogue.. Vários gostos aí na pandemia… (ri)
Manu: Muito bem... Vou passar para segunda pergunta, já aproveitando o que você falou. Me fala da tua pesquisa…..
Daiani: A minha pesquisa neste momento está caminhando para os seus 10 meses finais, já na elaboração da tese, e nesse momento específico eu estou pesquisando as relações entre a palhaçaria hospitalar dentro de uma perspectiva feminista e dos de estudos de gênero. Eu sou orientada pela Maria Brígida de Miranda - que é uma pesquisadora que há mais de 10 anos investiga práticas feministas em relação ao teatro. Então quando eu cheguei no curso de doutorado a minha proposta não era um recorte de gênero e feminismo, mas o diálogo com a minha orientadora, com os grupos de pesquisa, com outras profissionais também feministas, tanto da UDESC quanto da UFMS, acabaram me levando a compreender essa minha experiência na palhaçaria, com diversos recortes dentro da agenda feminista. Ou seja, de trabalhar palhaçaria no sentido do enfrentamento às múltiplas violências contra a mulher. Desde a graduação eu venho fazendo espetáculos já, não de uma maneira consciente, então quando eu conheci a Brígida, esses pontos se ligaram e eu percebi que o que eu fazia já era uma palhaçaria feminista, tanto dentro do hospital quanto em outros outros contextos da sociedade. Então eu acabei voltando a pesquisa, conscientemente, para esses aspectos feministas, no diálogo com a palhaçaria especialmente hospitalar - que é um espaço onde eu já tenho uma prática, e que ao longo de alguns anos já venho atuando como palhaça, e que percebo, não só pelas minhas práticas, mas também através de algumas pesquisas que o hospital ele é majoritariamente composto por mulheres. Então a gente vai se debruçando sobre essas especificidades. Inclusive a enfermagem é o maior contingente de mulheres dentro do hospital. Segundo a última pesquisa do IBGE cerca de 83% de mulheres compõem a equipe de enfermagem, tanto enquanto técnicas quanto como enfermeiras. Então só aí já dá uma equipe imensa de trabalhadores da área da saúde que são as que mais dialogam com as práticas hospitalares palhacescas, no caso. Então são mais ou menos essas relações que eu me proponho a abordar na minha pesquisa.
Manu:Que legal, amiga. Eu, apartir daí, já queria te perguntar mil coisas, mas eu vou seguir com aqui a minha listinha… Eu achei interessante a sua fala sobre palhaçaria feminista, sobretudo quando cruzada com essa questão da palhaçaria hospitalar. Eu não sei se você tem dados a esse respeito, em relação a quantificação de palhaças que são doutoras palhaças, por exemplo, não sei mas….
Daiani: Eu poderia dar uma informação, que talvez pode ser útil, né? No Brasil a palhaçaria, pelo histórico que a gente tem, ela vem sendo construída mais por homens até a década de 80. E aí começou a mudar e mais palhaças começaram a aparecer. O primeiro grupo hospitalar de palhaços no Brasil é o Doutores da Alegria, que começou em 1981, Que começou com o Wellington (Wellington Nogueira)… Então a palhaçaria hospitalar é a única ramificação da palhaçaria no Brasil que já começa a se fortalecer com as mulheres, porque as primeiras contratações do Wellington foram a Vera Abud, a Thaís Ferrara e mais dois rapazes - que agora eu não me lembro o nome, mas eu posso ver aqui se você quiser depois . Então a palhaçaria hospitalar já começa no Brasil com 50% da sua equipe formada por mulheres, o que não acontece por exemplo no circo, no teatro, onde as mulheres vão se inserindo. A palhaçaria hospitalar no Brasil já começa sendo construída junto com mulheres. Em 1993 a gente tem o início do trabalho da Ana Wou também, que traz uma metodologia de formação dentro do contexto hospitalar como palhaça, num trabalho que ela chama de Clown Visitador. Então a palhaçaria hospitalar no Brasil. e em outros países também - tem uma pesquisa que eu preciso atualizar, a maioria dos “palhaços hospitalares” contratados são mulheres… Na França, e em outros grupos também… Tem um site francês onde há essa quantificação e a maioria são mulheres.
Manu: Por que que você acha que isso acontece?
Daiani: Eu acho que tem relação com essa carga histórica do “cuidado” que recai sobre a mulher. Até na própria profissão… A enfermagem, inicialmente, no Brasil, ela era proibida aos homens. Foi só na década de 80 que foi permitido os homens fazerem enfermagem no Brasil. Então eu acho que essa questão do cuidado, ela é direcionada como uma carga para as mulheres. Muitas vezes numa situação não remunerada, como nos trabalhos domésticos, por exemplo. Mas quando as mulheres vão buscar o seu trabalho remunerado, ela ainda tem essa carga doméstica que pesa sobre ela, do cuidado com terceiros, do asseio, com a saúde, eu acho que com a pedagogia também - que é muito formada por mulheres, da educação e do cuidado com as crianças. Enfim… Acho que no hospital tem essa relação. E por exemplo, eu trabalhei no grupo da Michelle (referindo-se à Michelle Silveira), os Doutores Risonhos. Nesse grupo tinham algumas questões. Por exemplo quando a gente ia trabalhar no setor de maternidade, nesse setor só entravam palhaças. Porque, justamente, as mulheres estão lá numa situação às vezes, sei lá, amamentando, mais expostas, descobertas. Então tem alguns espaços hospitalares, sobretudo esse voltados a Maternidade onde é mais interessante só a presença das palhaças.
Manu: E vem cá… A gente tá falando aqui, diretamente e indiretamente, sobre a divisão sexual do trabalho… Alguma coisa assim, em relação a isso. Quando você fala em palhaçaria feminina, quando você fala em relação ao cuidado, tudo mais… Mas e em relação a comicidade? O que você entende por comicidade?
Daiani: É bem amplo essa essa pergunta.
Manu: Então eu vou trocar de lugar. Eu vou passar para pergunta 4 e depois eu retorno a essa pergunta . Então, vaí lá… O que você entende por gênero? Já que estamos falando desse cruzamento entre trabalho e gênero…. O que você entende por gênero?
Daiani: Gênero para mim é uma questão assim… Que desde a infância é uma carga que se destaca, né? Na minha vida desde criança eu ouço: “Ahhh, é menina ou é menino?”. Desde o ultrassom da minha mãe, que não apareceu o que era, e meu enxoval foi todo amarelo... E ninguém sabia o que que eu era, o que não era… Aí eu caminhando na rua ninguém sabe o que era, na escola ninguém sabia o que era e eu sempre no esforço deixar o cabelo crescer até a cintura e tentava de todas as formas não me destacar por isso, pelo gênero né? E tentava entender isso... Só que chegou o momento em que estas esse esforço ficou muito grande eu larguei dessas coisas e descobrir a minha sexualidade homoafetiva, e isso acho que caminha com a performance de gênero também, e o que eu entendo dentro dessa busca, que não foi consciente, ela veio me atravessou. É menina ou menino? Não foi uma coisa que eu busquei, foi uma discussão sempre presente, né?
Quando eu comecei a fazer palhaçaria
isso foi um alívio, dessa carga negativa, porque hoje eu consigo vivenciar a
partir da minha palhaça e me divertir com isso, com as pessoas não saberem se
é mulher ou se é homem, se é palhaça é
palhaço. Então tem um lugar aí, que é super diferente da infância, onde isso
era super incômodo, onde eu ficava com vergonha quando alguém me abordava. Hoje
a palhaça me permite brincar e aceitar essa característica da minha existência
e às vezes performar um gênero feminino, às vezes masculino, e não precisar,
pelo menos a palhaça - já que a nossa sociedade exige que a gente tenha uma performance
muitas vezes delimitada dentro de gênero, na palhaça não. Eu entendo que é um
lugar onde ela não tem, ela não precisa se enquadrar na caixinha do homem, na
caixinha da mulher, ela brinca com isso. E não faz muita diferença, ali no
universo dela, se as pessoas acham que ela é mulher ou ela é homem enfim. Então
acho que ali, o que eu entendo por gênero, passou a ser melhor compreendido, a
partir da minha palhaça. Acho que é mais ou menos isso...
Manu: Olha… Essa frase aí… Eu acho que dava para fazer um bannerzinho dela também...Essa sua frase final. A pergunta que eu pulei, e que agora vou retomar : “o que você entende por comicidade?” tentando já relacionar comicidade e gênero. Então eu vou juntar essas duas perguntas: “O que você entende por comicidade e como você relaciona comicidade e gênero?” - para aprofundar um pouquinho mais sobre isso que você já tá falando.
Daiani: Tá bom… Então, a comicidade também assim como gênero é uma coisa que vem na minha vida desde muito cedo, A minha bisavó ela era palhaça, ela gostava de se vestir de palhaça e ia para festinhas da comunidade aqui no interior de Santa Maria. Então quando tinha festinhas ela mesma fazia as coisas, costurava, criava ovelhas, tirava a lã, fazia as roupas… Fazia esculturas, fazia quadros, tudo lá no interior. Essa cultura da vaca e do boi… Ela gostava muito de ser palhaça. Adorava. Eu tinha essa referência… Meu avô também. Ele era super piadista. Se você apertava a mão dele, ele tirava todos os anéis da sua mão. E sempre buscando uma piada. E aprontava “pegadinhas”. E eu sempre nesse universo, buscando uma comicidade, porque eu achava isso legal. Eu queria ser isso também. Essa pessoa que faz piadas. Eu alugava VHS na época, quando eu era criança, do Ary Toledo. Não sei se você conhece esse comediante?! Um comediante piadista, e aí eu decorado aquelas piadas, depois contava na escola. Eu queria ser piadista. Então eu vinha ouvindo isso, até que um momento em que eu conheci a palhaçaria, e fui fazer faculdade de teatro, na intenção de ser palhaça. Então desde lá eu venho buscando essa comicidade que dialoga também com as minhas vivências de gênero. Por exemplo, eu passei 12 anos dentro de casa com agressor. Passando por muita violência doméstica, delegacias… Assim… Foram 12 anos bem intensos, nesse sentido de violência de gênero aqui dentro de casa, com o ex-companheiro da minha mãe. Ela teve um filho com ele, então eu vi minha mãe apanhando grávida. Eu fui para delegacia mil vezes.. Então essa vivência da violência doméstica era uma coisa muito próxima da minha realidade, entendeu? Quando eu entrei na faculdade, entrei com 18 anos. Tinha saído de casa com 17, então fazia um ano eu já tinha saído da violência doméstica. Na faculdade eu tive que fazer um espetáculo solo, criar uma dramaturgia, e eu só tinha um ano de faculdade… E nesse um ano que quis investigar a comicidade a partir da violência contra mulheres. E aí criei uma personagem inspirada na Estamira, daquele documentário?! E contando as vivências dela no âmbito da violência doméstica eu peguei textos, reportagens de algumas histórias, usei elementos da minha própria vida, da minha mãe, coisas que ela contava e fiz esse espetáculo. Em 2010 trabalhei com ele, circulei por algumas cidades, fiz algumas apresentações. Era uma figura meio bufonesca, ainda não era palhaçaria. Era uma comicidade meio bufonesca. Tinha enchimentos. Era meio uma personagem à margem… Então eu tivesse a vivência, e depois disso, com a palhaçaria, todos os trabalhos que eu fiz tiveram essa essa ponta de gênero, de discussões sobre gênero e diversidade.
Agora, com a linguagem da palhaça, o
que eu entendo por comicidade, é que é possível a partir dela criar
tensionamentos em práticas sociais com as quais eu não concordo. Por exemplo,
com a violência de gênero, a homofobia, dentre outras opressões de gênero. Acho
que a minha cidade se relaciona hoje com essa busca. Uma busca por uma comicidade
não pejorativa, que não vai rir da outra pessoa, mas que vai rir do
comportamento social, e demonstrar que ele está em curso, e que tudo pode ser
mudado. Toda palhaça consegue transformar as coisas com sua lógica cômica.
Então ela vem para mostrar que nada fixo, inclusive o gênero dentro da
comicidade.
Manu: Puxa eu vou colocar essa também num bannerzinho…. Você tá com umas frases, hein, amiga?
Daiani: É que na tese já vem o pensamento, a citação, você vai ver… Daqui a 3 anos a gente conversa. (risos).
Manu: Daqui 3 anos?! Daqui a dois anos, quando eu tiver perto de defender a gente conversa de novo… Por favor... (risos)
Daiani: Você também vai tá viciada numas frases da tese.
Manu: É porque… É muito bom… Você já vem e faz um…. Elaborei….( usa um gesto) (risos) Bom, dentro dessa perspectiva, se você quiserr falar mais alguma coisa relacionando comicidade e gênero?
Daiani: Olha…. Eu acho que a gente não falou muito de sexualidade dessa vez. Eu tô fazendo uma pesquisa agora e poderia citar umas mulheres palhaças sapatonas, né? Tenho aqui um acervo de palhaças sapatonas…
Manu: Ahhhhh….Me põe nessa lista aí...
Daiani: Ahhh. Já está, menina!!!!Eu coloquei você, sabe como? Coloquei até uma fotinha lá, do seu número, por que eu estou indo a partir dos trabalhos. Eu coloquei a sua homoafetividade como subjetiva, porque no número da viola, em que você chora, mas o público não está sabendo que você está chorando por causa de uma sapatona. Então é uma motivação subjetiva… Entendeu? Assim que eu coloquei. (ri)
Manu: Ahhh, nem...Vou ter que engolir essa… (coça o bigode)… Essa assim doeu viu?!
Daiani: Doeu?! Porque que doeu?
Manu: É… Não sei… É… Eu...(gagueja). Caramba… Não sei o que que meu professor vai falar da nossa a nossa entrevista… Eu tava indo bonitinha nas perguntas, não sei, mas eu penso na subjetividade: será que o público não sabe? Porque também eu não troco o “eu lírico” da música, nessa cena, eu não troco, eu falo ela.
“ O rio de Piracicaba… Vai jogar água pra fora…. Quando chegar a água, dos olhos de alguém que chora… Eu quero apanhar uma rosa, minha arma já não alcança, eu choro desesperado…. Igualzinho a uma criança... É… Pela dor de uma saudade… Eu quero ver quem não chora, quando ama de verdade”.
Não tem a alteração no “eu lírico” no sentido
de ser oferecido para uma mulher. É… Isso não tá no primeiro plano... Talvez…
Eu tô me revirando aqui com esse tema também, pode acreditar... Nós já
conversamos muito sobre isso, daquela vez em que eu na minha cena lá… Aquela
onde eu beijo mulheres, na cena da mágica, quando rola assim… Dessas decisões
que a gente vai tomando nos nossos dispositivos cômicos ou nos nossos
dispositivos poéticos, não sei. Eu sei que eu tô falando, mas quem tinha que
falar é você. Eu gostaria que você fizesse reflexão… Como é que você relaciona
essa questão da tua identidade pessoal com a sua questão do seu “gosto”, do seu
gostar, que eu usei lá em cima, voltando a primeira pergunta. A relação da sua
ocupação, do seu nome, com seu gosto, retomando um pouco essa primeira
pergunta. Ou seja, de uma maneira mais direta, como o seu “gosto” - enquanto
orientação sexual, afeta sua palhaça, tua identidade, porque…
Sabe? Essa pode ser uma questão interessante… Relaciona isso aí de novo
para mim?
Daiani: Tá.
Manu: A gente pode mudar… Ao invés de ser nome, ocupação e gosto, eu vou colocar então: identidade, palhaçaria e... Gosto. Vamos deixar isso de “gosto” porque eu acho que “gosto” é mais legal, deixa mais aberto, pra não ficar grosseiro… Direto.
Daiani: Tá.. Então relacionar isso com tudo com tudo isso. Tá…. Tá... Tá… (risos) (coloco a faixa “identidade, palhaçaria e gosto) Vamos ver assim ó : identidade, na linha que eu trabalho na palhaçaria, principalmente depois do encontro com a nossa maravilhosa Karla Conká, porque para mim foi uma transformação esse encontro em 2018 com ela, como eu vejo, como eu me vejo dentro da palhaçaria, e como eu vejo, tudo mudou, depois de encontrar Karla… Eu vou tentar explicar um pouquinho porquê. Porque ela chegou com uma proposta de valorizar nossa identidade como palhaças. Valorizar os nossos “gostos” e tudo que a gente fazia. Porque ela não chegava e dizia: “ faça outra coisa”, ela dizia : porquê você está fazendo essa coisa?”, então a partir daí eu comecei a investigar se a identidade da palhaça colada comigo conscientemente por que isso teve sempre implícito, como uma coisa de experiências pessoais. Mas então hoje a linha que eu acredito para mim que não seria possível ser palhaça apartada da minha identidade, dos meus gostos pessoais. Porque é isso que conduz o trabalho dela. É Isso que motiva ela, minha palhaça, a existir nesse mundo. Ou seja, investigar tudo aquilo que faz parte da minha identidade. Quando eu tô no corredor do hospital e encontro uma senhora e a gente começa a falar sobre uma planta, é porque faz parte do meu gosto sobre a planta, então eu vou conseguir dialogar com ela sobre aquilo, a gente vai trocar dicas de fertilizante comicamente, né? E buscar brechas alí da palhaça para jogar com esse meu gosto né? A mesma coisa são as discussões de gênero. Eu pesquiso, eu vivo, diversas questões de gênero. Então como que a palhaça põe o filtro da comicidade sobre essas vivências, sobre essa identidade, sobre aquilo que eu já existo, sobre como é que ela existe, diferentemente de todas essas existências. Então, eu acho que para mim, que eu acredito que tenha e funcione, e que existam muitas maneiras diferentes de fazer palhaçaria, mas hoje, profissionalmente, de vida, terapeuticamente - que eu acho que a gente ainda tem muito preconceito em relação à questão terapêutica no trabalho de teatro, e eu acredito que não… Pois, para mim, a palhaçaria tem vários elementos terapêuticos que trabalham com essa identidade, o que é suprimida muitas vezes nesse contexto cotidiano e sociais, ela tem essa possibilidade de lidar de outras maneiras com coisas de uma esfera pessoal que, de repente, eu não consigo lidar tão bem como ela consegue, lá naquele momento, tem me dado lições de identidade mesmo. Ah... “Porque que ela fez isso?” Então eu passei me perguntar: “Porquê que a palhaça fez isso? Da onde vem?”. Então a partir do momento em que eu me questiono sobre as coisas, eu não quero só controlar… “Agora uma batida técnica aqu”. “Agora é um malabares aqui”. “E agora toca essa música”. “Agora faz aquilo”. Mas também visualizar a palhaça como um portal de abertura para o inesperado, para tudo aquilo que nos interpela no cotidiano, para um olhar, um barulho, um sorriso... Então esse espaço de abertura para ela colocar em jogo essa identidade, esses “gostos” que eu pratico no dia a dia… Ela vai lá e contextualiza isso... Acho que, principalmente no contexto hospitalar, que tem essa busca por um bem-estar geral, uma coisa assim… De aliviar as tensões do momento…. De muitas vezes embarcar naquela onda ali... Acho que acaba vindo essa identidade mais forte… De simplesmente estar à disposição de tudo que vai acontecer e não uma partitura de ações marcadas. Não que eu não possa ter, que não seja interessante... Mas acho que a técnica, está à serviço dessa identidade se revelar, dessa palhaça, dessa identidade se revelar…
Manu: E aí, dentro da sua perspectiva, como é que isso se revela? Dentro do seu trabalho… Como seu gosto, e suas identidades se revelam dentro da sua palhaçaria? (pausa) Queria que você aproveitasse e comentasse a respeito do que você falou, da minha palhaçaria, ou de como você a lê, no sentido do que você disse a respeito disso da homosexualidade subjetiva. Fiquei interessada em saber quais as outras características, ou categorias, que você tentou criar, conversar… Enfim...
Daiani: Tá. Eu acho que dentro da minha palhaçaria esses elementos se revelam a partir de discursos, muitas vezes não verbais. Minha palhaçaria usa muitas vezes discursos não verbais, e também verbais. A acho que quando a minha palhaça chegar com uma roupa que não dá para saber se é masculina ou feminina, se brincar com esses trejeitos, ela já está aplicando uma quebra dessa normatividade, de vida, dessas performances tão delimitada que é o masculino e feminino. Então só dela existir dentro desse trânsito, dessas duas energias, acho que isso já marca a minha própria identidade de buscar uma flexibilização, até porque eu não consigo me enquadrar, por mais que eu tenha tentado, eu não consigo me encontrar nessas delimitações. Então ela existir, também ajuda a flexibilizar, não só para mim, mas também para quem assiste, a flexibilizar esses limites da performance de gênero. Dentro de outras questões também… Mas eu acho que, para gente entrar nessa questão, seria mais ou menos por aí. Então sobre os números de homoafetividade feminina, não que eu tenha feito uma categoria… Eu peguei palhaças que eu sei que são lésbicas e que fazem trabalhos lésbicos, mesmo que não sejam explícitos - que eles sejam subjetivos, como no caso né? Mas tem alguns como as Só Ladies ( referendo-se ao Circo de SóLadies), onde elas pegam o dois números clássicos circenses, a doapito e o outro, que eu não me lembro o nome, mas eu tenho anotado se você quiser depois eu vejo… Então são dois números da circo, um da tradição brasileira e outros da tradição francesa, e elas fazem uma dramaturgia lésbica, pois no final se beijam… Ahhh.. E tem uma palhaça mexerica também, Maria… E esqueci o segundo nome dela, mas ela é de São José e me mandou um vídeo. A gente conversou e tudo. No número dela ela vai, dá beijo em alguém e vai embora com uma drag queen. E tem o meu número também onde tem um beijo gay e um beijo lésbico. E tem também a Cia Fundo Mundo, que eu estou em contato também. Lá que tem um palhaço homem-trans, e ele traz essa performance, essa quebra da performatividade do gênero, tem a Hellen Maria, que é uma palhaça lésbica também trans. E por enquanto... Só isso. (risos) Tem a Manuela Castelo Branco também (risos) que faz uma cena que onde o público não percebe que - claro se você não a conhece, você não sabe que ela é lesbicas e não percebe a motivação lésbica. O que também é interessante, porque isso também é interessante, porque não necessariamente nós palhaças lésbicas precisamos trabalhar explicitamente. isso de colocar em neon. Você estar fazendo uma estrutura abordando a subjetividade é potente também, porque você coloca a coisa de uma maneira mais comum, porque é a coisa mais natural do mundo uma pessoa chorar por alguém.
Manu: Não sei se você conhece o palhaço o caburé palhaço do Maranhão ele é muito maravilhoso. Ele é homossexual assumido e na cena dele, no espetáculo dele, do começo ao fim, tem essa essa revelação da homossexualidade dele, sabe? Eu vou ver se consigo que você entre em contato com ele, porque o trabalho dele também é muito significante para a gente que tá pesquisando isso. Eu sei que nós duas estamos pesquisando isso… E, por fim, para finalizar queria que voce falases sobre isso da palhaçaria feminina, feminista e\ou queer. Naquela época a gente começou a discutir isso...
Daiani: É. Já teve o cabaré que estivemos lá em São Paulo, o primeiro cabaré queer. Eu tô para escrever o artigo em novembro, quando eu e Ana Fucks vamos mastigar essa questão do feminino, do feminista, do que é do quê que não é, vamos tentar mapear isso. Eu gosto mais de palhaçarai feminista e Ana Fucks de palhaçaria femininina.
Manu:Viu como “gosto” é legal? Porque deixa bem aberta a questão para a pessoa poder se assumir ou não. Do que gosta….
Daiani: Exatamente. Então nós já temos essa discussão. Eu gosto de palhaçaria feita por mulher, mas aí, tem horas que já não gosto mais, porque porque pode ser visto como transfóbico, e estar excluindo. Melissa Caminha é uma referência para mim, muito incrível. Na hora da palhaçaria e ela vem falar, vem me atentar para isso, que o feminino muitas vezes não inclui todas as existências. Eu, por exemplo, não faço palhaçaria feminina, Não é a minha não. Tem outras outras existências que talvez não se enquadrem nessa ideia de feminilidade, né? Já que tem todo uma carga histórica do modelo da feminilidade que foi forjada à partir das caças às Bruxas, com a Silvia Federici, onde as mulheres vão sendo excluídas… Então feminino é uma palavra que não gosto porque ela exclui. Exclui muitas amigas minhas e pessoas que talvez não se enquadrem. E tá tudo bem não se enquadrar nessa ideia de masculino de feminino, né?
Manu: É… Mas você faz palhaçaria feminista pelo que eu tô entendendo, não faz palhaçaria feminina, mas ainda se lê como mulher?
Daiani: sim sim sim
Manu: E a Monique Witts?
Daiani: Então, a Monique foi muito importante, Chegou e meteu o pé na porta. “ Lésbica não é mulher”. “Parem com isso aí... que nem mulher a gente que é lésbica é. É outra coisa. Porque na minha leitura ela quer quebrar com esse ideal de feminilidade. Então tem o preço. Ela vai falar ela não é mulher economicamente, porque ela escreveu que, para ser “mulher de verdade” ela tinha que estar dentro de uma casa, sendo sustentada por um homem. Então uma mulher que se sustenta não é mulher. Então já começa por aí. E entendeu outras questões... Ela não é homem nem mulher, porque como lésbica, não serve exclusivamente para reprodução. Então não é a mulher..
Manu: E tem todas essa questão do cuidado que você mencionou lá atrás
Daiani: Mas aí vem a Butler que vem nos qualificar nesse lugar. Mas eu tenho pensado muito nisso. Que esse ideal de feminilidade é super ligado ao capitalismo. E depois da Frederici, com a revolução sexual do trabalho, eu acho que vem muito nessa forja no modelo de feminilidade, vem muita para se enquadrar na da mão de obra grátis, que serve ao patriarcado.. Na questão da reprodução, por exemplo, a palavra proletariado vem da palavra prole, então a mulher é produtora da mão de obra, que além de tudo, ela gerencia essa mão de obra. Como em casa, nessa questão do feudalismo, dessa passagem do feudalismo para o capitalismo, e todas as atividades econômicas. Se você era pega fora disso, era criminalizada, e podia parar numa fogueira, sendo considerada como um bruxa, porque estava trabalhando…
Manu: Fazendo cerveja …. (risos)
Daiani: Meu amor, nós estaríamos todas na fogueira. (risos) Então tem essa divisão, forjada muito a partir do capitalismo.
Manu: Quer falar mais alguma coisa, antes de terminar? Recuperar algum pensamento que ocorreu durante a nossa entrevista?
Daiani: Nossa… Eu acho que a gente falou tanta coisa… Vai dar um trabalhão para você para escrever… Mas eu queria te agradecer pela oportunidade. Acho que é sempre bem importante a gente conversa com as nossas pares. É importante. A gente percebe coisas que não tinha percebido ainda, né? Super importantes a gente estar próximas, porque as nossas pesquisas conversam muito, e eu tô junto com a força. Tem tudo a ver com as nossas pesquisas. E cada uma num momento diferente, ela (An Fucks) terminando eu tô quase. E você, tá aí, entrando. Poxa... Vamos escrever esse artigo as três mãos… A gente quer fazer no começo de novembro. Bora?
Manu: Tô dentro.
Daini: Então tá. A gente vai fazer…
Manu: Então tá amiga. Já é. Eu que quero agradecer o convite e a conversa… Também para mim é sempre muito potente conversar com você. Sempre me transforma um pouquinho. Grande beijo…
Daini: Beijo.
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