Participação, observação e relato Redefinição do conceito de Teoria e implicações para metodologia de estudo de processos criativos

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Marcus Mota - Participação, observação e relato Redefinição do conceito de Teoria e implicações para metodologia de estudo de processos criativos

Marcus Mota Professor de Teoria e História do Teatro Universidade de Brasília (UnB) 

{Trabalho apresentado à V Reunião Científica da Abrace. São Paulo: USP, 2009.


Palavra-chave: Estudos Clássicos, Teorias Teatrais



A aproximação entre Estudos Clássicos e Performing Studies tem acarretado a redefinição de diversos conceitos e experiências. Entre eles temos o de Theoria. Recentes pesquisas contextualizam mais efetivamente a atividade que na maioria das vezes se viu relacionada ao campo da especulação filosófica.

Segundo Andrea Nightgale “In the classical period, theoria took the form of pilgrimages to oracles and religious festivals. In many cases, the theoros was sent by his city as an official ambassador: this “civic” theoros journeyed to an oracular center or festival, viewed the events and spectacles there, and returned home with an official eyewitness report. An individual could also make a theoric journey in a private capacity: the “private” theoros, however, was answerable only to himself and did not need to publicize his findings when he returned to the city. Whether civic or private, the practice of theoria encompassed the entire journey, including the detachment from home, the spectating, and the final reentry. But at its center was the act of seeing, generally focused on a sacred object or spectacle. Indeed, the theoros at a religious festival or sanctuary witnessed objects and events that were sacralized by way of rituals: the viewer entered into a “ritualized visuality” in which secular modes of viewing were screened out by religious rites and practices. This sacralized mode of spectating was a central element of traditional theoria, and offered a powerful model for the philosophic notion of “seeing” divine truths (NIGHTGALE 2004:3).

Ou seja, em termos técnicos, podemos identificar que, antes de sua codificação filosófica, o exercício da THEORIA desdobrava-se em atividades privadas ou publicamente comissionadas de indivíduo ou grupo de indivíduos para participar, observar e transformar em relato um programa de eventos religiosos.

Como se pode observar, a definição de THEORIA não é pontual: há um conjunto heterogêneo de atos, saberes e deslocamentos, que projetam a complexidade de uma prática cultural específica, cuja matriz é religiosa, mas que se espraia como instituição cívica.

Partido dessa heterogeneidade de base, podemos começar a detectar alguns de seus aspectos mais relevantes. O exercício da THEORIA demanda inicialmente uma “dramaturgia da jornada”, com suas etapas de partida e retorno como marcos bem característicos. Ao se colocar em movimento, em transcurso, em participe da jornada, o agente da THEORIA inicia o processo cujo limites são ao mesmo tempo as expectativas e os parâmetros que contextualizam a atividade: ir para ter de voltar é o que especifica o agente da THEORIA.

A dramaturgia da jornada efetiva-se apenas pelo transcurso, pelo cumprimento do circuito de partida e retorno. Há uma experiência na amplitude da jornada que somente a consumação de todo o transcurso atesta que a THEORIA foi realizada. Assim, há uma homologia entre a experiência da THEORIA e a amplitude da jornada.

Logo a amplitude da jornada e, consequentemente, a da THEORIA, explicita-se pela diferença radical entre os momentos iniciais e finais do transcurso. É pela impossibilidade de haver a completa identidade entre a partida e a chegada que o sujeito da THEORIA precisa por-se em caminho, para, além de seu lugar, porque, onde ele está, a THEORIA não se realiza, e no espaço de emergência da observação lá mesmo a jornada não se completa. Há uma paradoxal dinâmica na configuração das partes da THEORIA: tudo se encaminha para a incompletude de cada etapa, com a não identidade entre agente e local. Em um primeiro momento, o agente da THEORIA precisa dirigir-se para um outro espaço-tempo a fim de dar início ao processo. Chegando a este outro espaço-tempo, ele ainda não atingiu todo o percurso.

Dessa maneira, para o exercício da teoria em sua amplitude o agente exercita-se em um conhecimento que o envolve totalmente, que o leva para um outro tempo e lugar. O deslocamento físico do agente da THEORIA é a imagem da mudança, da transposição necessária que tal conhecimento reivindica. Para que o conhecimento teórico se efetive é necessário que o sujeito participe de algo que não está relacionado ou reduzido ao seu universo familiar e cotidiano. Há pois um intrínseco laço entre a THEORIA e seu exercício: participar da THEORIA é tanto conhecê-la quanto conhecer-se.

O segundo momento é o da participação nos rituais. Após a jornada, o agente da THEORIA integralmente deslocado figura um novo desdobramento: entre aquele que toma parte do intenso e variado programa das celebrações rituais e aquele que as observa, descreve, analisa, assimila. Sons e imagens dos cultuantes em suas canções, danças e palavras povoam a mente. Trata-se de um saber testemunhal que articula diversas competências. Alem disso tal saber está submetido à atualidade da co-presença dos rituantes e do observador. Pois, do contrário, a jornada seria irrelevante. Existe a jornada porque o tipo de conhecimento que se adquire na THEORIA é algo que não pode ser realizado completamente à distancia, na ausência. O agente da THEORIA deve deixar seu lugar pois não está em si e nem onde mora aquilo que vai conhecer.

Dessa forma, a atualidade da performance dos cultuantes promove um contexto experiencial único, irrepetível, que se transforma no horizonte dos desdobramentos do peregrino.

Porém, no prosseguir do tempo de contato com os eventos observados, ocorre uma redefinição do “estranhamento teórico”: aquilo que antes era extraordinário e inusual, que acarreta tamanho esforço da jornada, torna-se então o cotidiano, o habitual. A intensa carga de eventos do programa das festividades religiosas lança o agente da THEORIA de um padrão anterior deixado na cidade de

outrora para o padrão construído a partir das celebrações de agora.
Se se observar bem há vínculos estreitos entre os conhecimentos e experiências do agente da THEORIA nas etapas do transcurso e da participação nos rituais: em ambos os momentos há um desdobramento de ações e habilidades, que demandam uma ampliação da percepção que o agente venha a ter de si ao se ver diante de eventos que o colocam nos limites de sua mundividência. Ao partir e ao chegar nos festivais, o agente da THEORIA confronta-se com a abertura provocada pela simultaneidade de expectativas e padrões, do entrechoque entre experiências prévias e novas situações.

O terceiro momento é o do retorno. Tudo que viu e ouviu deve caber em um relato. O relato contém o registro dos eventos e sua apreciação. Aqui temos duas perspectivas, a do peregrino e a de sua comunidade de origem. Para o peregrino há um intervalo radical entre o relato e os rituais: tudo o que ele disser não vai englobar o que aconteceu. Mas o que for selecionado para ser apresentado é o que ele traz consigo. A construção do relato explicita tanto as experiências observadas com a transformação destas em um conjunto organizado de referências. As habilidades em compor esse conjunto conjugam-se com a amplitude dos eventos observados. Daí a segunda perspectiva: o que importa é mostrar para aqueles que não foram aos rituais que eles foram bem representados, que, mesmo que não empreenderam o transcurso para além dos muros da cidade, ainda são capazes de experimentar e dar completude a uma experiência de certa maneira a eles vinculada. O relato é uma experiência de correlação, não se esgotando no conteúdo de sua mensagem, nem na atividade de seu realizador: há algo para além do circuito observado-observador, uma modalidade de saber que parte da unicidade do intérprete mas se encaminha para a comunidade.

Com isso, a jornada do agente da THEORIA é o percurso de atualização de uma série de contradições que definem um conhecimento em performance. Tal saber processual e peregrino projeta-se como uma via de acesso para muitas das questões que envolvem artistas inseridos na inteligibilidade de seus processos criativos. A realização de pesquisas em artes aproxima-se da produção de conhecimento em processos criativos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NIGHTINGALE,A. W. Spectacles of Truth in Classical Greek Philosophy. Theoria in its Cultural Context. Cambridge University Press, 2004.

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